A inquietude sempre foi um traço fundamental de Elis Regina, identificável tanto em sua personalidade quanto em sua carreira. Prova disso foi a maneira com que lidou com o êxito da canção “Romaria”, um de seus maiores sucessos. Presente no repertório do álbum Elis, lançado em 1977, a bela composição que revelou ao Brasil o paulista Renato Teixeira, ganharia uma roupagem inusitada no show Transversal do Tempo, que estreou em 17 de novembro do mesmo ano, no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, cidade natal da cantora.
Aos 13 anos de idade, eu tive o privilégio de ver, em agosto de 1978, Elis surgir sobre o palco de um Teatro Guaíra cheio, para cantar “Romaria”, música em forma de prece entoada por um peão à sua santa de devoção, vestida de Nossa Senhora Aparecida. A ousadia da cantora, aplaudida em cena aberta por uma plateia perplexa, ao mesmo tempo subvertia e reforçava a singeleza da canção cujos versos dizem: “Me disseram porém/ que eu viesse aqui/ pra pedir de romaria e prece/ Paz nos desaventos/ Como eu não sei rezar/ Só queria mostrar/ Meu olhar, meu olhar, meu olhar”.
Em plena ditadura militar, “brincar” com valores da pátria de então, como a religião católica, assumindo o papel da Padroeira do Brasil, foi encarado por muitos como afronta, mas os ventos da Abertura já começavam a soprar, ainda que timidamente, e evitaram que esse trecho do show, que teve roteiro e direção de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, fosse censurado.
Lembro-me que após a apresentação fui ao camarim de Elis, levado por um tio, Julio Galdi Jr., que fazia a produção local do show. Da porta, vi a figura diminuta da cantora, que me parecera gigante em seu talento sobre o palco minutos antes, de malha preta e descalça. Com os cabelos muito curtos, a pesada maquiagem de cena estava borrada e ela parecia chorar. Alguém da equipe comentou que ela teria ficado sabendo que um amigo, desaparecido por conta de sua militância contra o regime militar, estava vivo e lhe mandava notícias por meio de alguém com quem conversava à meia-voz. Jamais tirei essa imagem da memória. E, se já gostava da cantora, tornei-me, naquela noite, seu fã para sempre.
Nova edição
Portanto, foi com felicidade e emoção que soube, nesta semana, que o álbum Transversal do Tempo, gravado ao vivo em abril de 1978 e lançado no mesmo ano pela Philips com apenas dez faixas, vai ganhar uma nova edição ainda em 2012, quando se lembram os 30 anos de morte de Elis Regina.
O álbum será produzido pelo jornalista e pesquisador carioca Rodrigo Faour e será mixado pelo filho mais velho de Elis, João Marcelo Bôscoli. Em entrevista à Gazeta do Povo, concedida por e-mail, Faour disse que “é um prazer e uma emoção enormes prestar um tributo desta envergadura a uma artista que me emociona tanto desde pequeno e cujo trabalho jamais perde a atualidade”.
O álbum será produzido pelo jornalista e pesquisador carioca Rodrigo Faour e será mixado pelo filho mais velho de Elis, João Marcelo Bôscoli.
Estarão lá temas inéditos na voz dela, como “Amor à Natureza” (Paulinho da Viola), “Esta Tarde Vi Llover” (do mexicano Armando Manzanero), “Maravilha” (parceria obscura da dupla Francis Hime e Chico Buarque) e “Gente” (Caetano Veloso).
Discografia é relançada com direito a inéditas
O pesquisador e jornalista Rodrigo Faour também é o responsável pela reedição da discografia da cantora, lançada em 1998 em uma caixa. “Há anos sonhava em reeditar os CDs da Elis de maneira melhor em relação à caixa anterior, com capas, contracapas, encartes, letras revisadas, som ainda melhor e também incluir todas as faixas avulsas dela possíveis.” Isso se tornou viável com o apoio e à convite de Alice Soares, gerente de projetos da Universal, gravadora que hoje detém os direitos da Philips e da Polygram, selos pelos quais Elis lançou a maioria de seus álbuns fundamentais.
Nos arquivos da Universal, conta Faour, ele conseguiu encontrar “Comigo É Assim”, sobra do LP Como & Porque, de 1969. “Fora isso, resgatei takes alternativos de ‘Amor até o Fim’ e ‘Exaltação a Tiradentes’, um ensaio da gravação de ‘Águas de Março’, do disco Elis & Tom, e muitas pérolas que nunca entraram em coletâneas dela.”
Na primeira caixa, Elis nos Anos 60, entra a compilação Pérolas Raras, que foi produzida por Faour na virada de 2005 para 2006, e mais um CD simples com gravações de 1965 a 1968. E na segunda, Elis nos Anos 70, foi incluído o CD duplo No Céu da Vibração, com mais 28 faixas avulsas.
O produtor conta que uma das grandes diferenças em relação à caixa anterior é que ele colheu depoimentos de quase 20 profissionais que trabalharam com Elis. É um complemento importante à biografia dela, Furacão Elis, de Regina Echeverria, que aborda mais a persona de Elis Regina do que detalhes artísticos do seu trabalho.
Montreux
Outro disco ao vivo, também ganhará nova edição Montreux Jazz Festival, que registra a participação da cantora no evento suíço, em 1979. Elis fez dois shows naquele dia. Um à tarde, em que fez uma ótima performance, e outro à noite, já cansada.
Lançado meses depois de sua morte, o LP de 1982 trazia apenas nove faixas, retiradas quase quase todas da apresentação vespertina.
Com o título de Um Dia, a nova versão terá dois CDs, com ambas as apresentações. A produção ficou a cargo do pesquisador Marcelo Fróes, que planeja lançar em DVD a íntegra dos shows em Montreux.