Aos poucos, um som vai tomando de assalto a cidade. Recife, entre todos seus contrastes e idiossincrasias, não tão diferentes de parcela considerável do Brasil, começa a pulsar em um ritmo contínuo. Mangue, som, suor, calor, maresia, concreto e amor se unem de modo sinérgico há 20 anos. No meio daquele mundaréu de gente, o coração canta: vem aí a próxima edição do No Ar Coquetel Molotov.
São diferentes sonoridades, inúmeros movimentos, múltiplas fontes de energia, que decidem encontrar eco em um público que se sente pertencente desde um distante 2004. Ao longo das horas do próximo dia 21 de outubro, Recife deixa de ser a capital pernambucana para assumir o posto de farol do Brasil. Novos sonhos serão instalados nas pessoas que insistem em combater a sisudez que permeia a sociedade.
“Tenho orgulho no pequeno marco que estamos deixando na história da música pernambucana, nordestina e brasileira”, conta Ana Garcia, diretora do No Ar Coquetel Molotv, em entrevista exclusiva à Escotilha. Derivada do francês urguli, orgulho expressa com exatidão a busca frequente da excelência por parte do evento, já consolidado no calendário artístico brasileiro. “[A jornada do festival] tem sido uma viagem turbulenta, mas estamos contando uma história linda”, compartilha Ana, grata por trabalhar com música e cultura, ciente da montanha russa do setor. “É um desafio, mas, talvez, por isso que eu ame tanto”, complementa.
Mãe poderosa
No Campus da UFPE, espaço por onde trafega o presente e o futuro do país, o Coquetel Molotov se vê diante de um espelho. E para refletir a luz dessas mentes brilhantes, a organização preparou uma experiência que se dividirá em três palcos: Coquetel Molotov, Natura e KMKAZE. Ali, nomes consagrados como Marcelo D2 e Luedji Luna dividirão espaço com o britânico Gaika, as ascensões N.I.N.A e ÀTTØØXXÁ, e a revelação Afroito, entre outros.
“Marcelo D2 é um ícone para mim. Lembro de ver Planet Hemp estampada em uma revista de música nos EUA quando ainda morava lá, no começo dos anos 1990”, relembra a diretora. Gaika, que chega ao Recife financiado pelo edital Cutura Circular do British Council, também soma ao DNA do evento. O músico se apresentará ao lado do Afoxé Oyá Alaxé, da mestre da cultura popular Mãe Maria Helena.
Já o olindense Afroito, cuja sonoridade presta homenagens ao coco e à ancestralidade, desponta como uma das principais apostas para os 20 anos do festival. “Estamos sempre nessa busca de trazer algo novo e fresco dos artistas locais para o nosso palco”, explica Garcia. Ainda sobre as atrações, Ana rememora a passagem de Luedji Luna pelo Coquetel Molotov na edição de 2016. “Naquela época, era uma grande aposta nossa. (…) [Hoje], ela representa bem o que gostaria que o festival fosse – uma mãe poderosa”.
Entrevista com Ana Garcia
Na expectativa para a comemoração de uma trajetória marcada pela celebração da música brasileira, com um olhar muito atencioso à cena independente, Ana Garcia lidera um movimento vanguardista no empreendedorismo cultural.
Para além das reuniões de marketing, a marca foi pioneira em agregar a seu DNA princípios-chave como equidade de gênero, acessibilidade e sustentabilidade. O que, ressalta a própria diretora, ainda pode (e deve) melhorar. “Há mais de cinco anos temos esse cuidado em ter uma programação equilibrada e recebemos alguns selos como o Keychange e o Selo Igual do WME. Sustentabilidade é onde precisamos focar cada vez mais nossos esforços, porque moramos em uma área onde é super difícil encontrar energia limpa”, explica.
Entre uma demanda e outra, Ana teve a gentileza de dedicar tempo à Escotilha, em um papo franco sobre a história do Coquetel Molotov, a programação de 20 anos e o futuro de um dos mais importantes eventos do calendário musical do Brasil. Confira.
Escotilha » O No Ar Coquetel Molotov celebra seu 20º aniversário este ano. Como você descreveria a jornada do festival ao longo dessas duas décadas?
Ana Garcia » A primeira palavra que vem em mente é uma montanha russa, mas não quero soar como exigente ou ingrata. Acho que preciso ser muito grata por estar trabalhando com música e cultura por tantos anos. É um desafio, mas talvez por isso que eu ame tanto. Tem sido uma viagem turbulenta, mas estamos contando uma história linda. Tenho orgulho no pequeno marco que estamos deixando na história da música pernambucana, nordestina e brasileira.
‘Tenho orgulho no pequeno marco que estamos deixando na história da música pernambucana, nordestina e brasileira.’
Ana Garcia
Qual é a filosofia por trás do festival No Ar Coquetel Molotov e o que o torno único no calendário musical do país?
Acho que a filosofia principal é fomentar uma cena, apresentar tendências e trazer novidades musicais local, nacional e internacional quando possível. Criar um espaço seguro. Escutar o público. Dialogar. Talvez a mistura disso tudo é que faz o festival ter uma energia tão especial e ser tão único. Com esse boom de festivais rolando e podendo ir conhecer alguns, me faz entender cada vez mais como o Coquetel Molotov tem um propósito e, mesmo com uma programação às vezes tão louca, existe ali uma linha imaginária que conecta tudo.
Como a curadoria do festival evoluiu ao longo dos anos, e quais são os critérios para a seleção de artistas e atrações?
Acho que conforme fomos entendendo que um festival de música é um dos palcos mais importantes para fazer política, a programação foi evoluindo rapidamente. Começamos como jovens universitários que só queriam assistir as suas bandas favoritas na sua cidade, elas tinham uma pegada mais indie, pop, rock, experimental… isso em 2004, quando tudo começou. Mas já na sua quarta edição, começamos a entender a potência do festival e as suas possibilidades.
O mercado musical brasileiro também foi mudando bastante, a internet, boom de bandas brasileiras rodando, Fora do Eixo, a nossa programação passou a focar nos artistas nacionais. Outras pautas começaram a surgir, como ter mais mulheres no palco. Mas o critério tem se mantido meio que o mesmo desde sempre, estamos sempre escutando o que o público quer, tentando trazer artistas e lançamentos que possivelmente não teriam oportunidade de vir. É quase um quebra cabeça. Claro que o maior critério acaba sendo o financeiro, a programação é bem baseada no que podemos arcar também.
Pode nos falar sobre os princípios-chave do festival, como equidade de gênero, acessibilidade e sustentabilidade, e como eles são incorporados na organização do evento?
Tem sido interessante como as nossas premissas viraram premissas do festival. Em 2016, já estávamos preocupados em tornar o festival acessível, fizemos visita técnica com um cadeirante para entender o que iríamos precisar melhorar de mobilidade no espaço e tivemos naquele ano mais de 10 PcDs dentro do festival. Mas não tínhamos conhecimento de que precisávamos muito mais para tornar o festival acessível, como ter libras no palco, audiodescrição, equipe de apoio, espaço para PcDs.
Em 2017, fomos denunciados e eu fiz disso uma oportunidade para aprender o que tínhamos que melhorar já para a edição de 2018 e desde então estamos sempre tentando tornar a experiência melhor. A pauta de equidade de gênero na programação também já tem alguns anos e ela surgiu mundialmente, para ser sincera. Comecei a estudar e ler bastante sobre programações de festivais gringos e percebi o que era tão óbvio, todas as programações eram majoritariamente masculinas. Ou a gente fazia uma curadoria com propósito ou iria continuar para sempre assim.
Então, há mais de cinco anos temos esse cuidado em ter uma programação equilibrada e recebemos alguns selos como o Keychange e o Selo Igual do WME. Sustentabilidade eu acho que ainda é onde precisamos focar cada vez mais os nossos esforços, porque moramos em uma área onde é super difícil encontrar energia limpa, simplesmente não existe geradores limpos aqui, por exemplo. Acho que precisamos melhorar muito a consciência do nosso público para entender que cada um está deixando uma pegada de carbono na hora de ir pro festival e que é possível medir isso e compensar. Temos parceria com a Ecoe e a Eccaplan. Espero um dia ser um evento lixo zero.
‘Acho que a experiência de festival de música atualmente virou uma outra coisa e o nosso ainda continua sendo a música.’
Ana Garcia
Como você vê a contribuição do festival para a promoção da música independente e diversificada no Brasil?
O Coquetel Molotov é um palco importante para artistas. Nunca vou esquecer quando Marcelo Camelo pediu para lançar o seu projeto solo no festival, acho que ele sabia que poderia medir ali o seu público. Temos uma plateia que ama música e está ali por isso. Por incrível que seja, isso é algo meio raro hoje em dia. Acho que a experiência de festival de música atualmente virou uma outra coisa e o nosso ainda continua sendo a música.
E palcos como os nossos, dos festivais independentes que têm mais de 15 anos, que têm sido importante para criar um público e criar bandas. Esses grandes festivais só rolam no Brasil porque há muitos anos temos a cultura de festivais independentes rolando. Eu demorei para enxergar isso. Foi uma fala de Zé Ricardo, curador do Palco Sunset e do Rio2C, que me fez entender como o nosso papel [enquanto festival independente] tem sido super importante.
Você poderia compartilhar algumas memórias ou momentos marcantes ao longo das edições anteriores do festival?
Tivemos muitos momentos marcantes, mas para mim acho que a turnê do Dinosaur Jr. é uma que jamais irei esquecer. Foi muito especial trazer a banda pela primeira vez ao Brasil, fazer shows esgotados por diversas cidades e em São Paulo fizemos um show especial em um parque de graça. Nossa, foi incrível a energia. Lembro deles terem ficado muito animados e se sentindo com 18 anos novamente.
O show dos Racionais no teatro foi impactante, mexendo literalmente com as estruturas. The Kills no Recife morrendo de calor. Boogarins fazendo o seu primeiro show fora de Goiânia. Miike Snow deve ter feito a luz mais incrível que já vi em um show. São tantos momentos! Mas cada ano tem um gosto especial e as suas histórias.
Como foi a seleção de artistas para esta edição comemorativa de 20 anos e qual é o destaque da programação? O que os fãs podem esperar da programação deste ano?
Acho que foi a curadoria mais louca que já fiz. Ela pareceu meio desconexa e no fim está contando uma história tão linda. Porque, como falei antes, o nosso maior problema é sempre financeiro e isso já estava claro pra mim no começo do ano. Então, quis trazer um pouco também de quem vem fazendo música alternativa há uns anos no Recife, então por isso tem projetos de outras produtoras como você pode perceber no Palco KMKAZE que tem a curadoria de IDLIBRA. Quis ter um olhar mais nordestino também, porque estamos vivendo um momento muito incrível na música com muitos lançamentos.
Ao mesmo tempo, tem bandas de lugares tão diversos do país, mostrando que estamos vivendo um momento incrível na música e não apenas cenas nichadas. Acho que temos diversos destaques, desde grandes nomes do momento atual como Marcelo D2, Luedji Luna, FBC, N.I.N.A do Porte, a bandas mais independentes como é o caso do Boogarins, Tuyo, O Quartinho, as novas apostas como Bebé, Bruno Berle, Afroito, um palco eletrônico que está super chic, com nomes incríveis da produção musical atual.
Pode nos falar mais sobre as parcerias e patrocínios que tornaram esta edição do festival possível?
Um dos nossos maiores parceiros e que acredita no festival desde as suas primeiras edições é a Prefeitura do Recife, e temos muita sorte de ter uma cidade que abraça o festival. Sei que isso não é uma realidade para muitos festivais independentes afora, em compensação, a maioria tem o mecenato – o que não temos em Pernambuco! A parceria com a Prefeitura tem sido importante para o desenvolvimento de outros projetos como o Festival da Juventude, que temos feito parte da curadoria e produção de modo probono como uma forma de retribuir.
A Natura está conosco pelo 5º ano consecutivo e tem sido uma marca muito importante por estarem fomentando a cena musical há tantos anos. O diálogo é muito aberto e a ideia é construir juntos, o que torna a parceria mais forte. O SEBRAE está apoiando o Coquetel Molotov há mais de 15 anos, sempre pelo cunho empreendedor do festival e a cada ano a gente consegue desenvolver outros projetos paralelos para capacitar cada vez mais pessoas.
Um outro braço do festival, chamado Coquetel Molotov Negócios, este ano recebe pela primeira vez patrocínio via Lei de Incentivo à Cultura do Nubank e foi pelo lado ESG da empresa. Ficamos muito felizes e orgulhosos pelo projeto ter passado pelo seu cunho social e espero que isso seja o começo de uma longa parceria.
O festival possui três palcos diferentes. Como cada palco contribui para a experiência geral do evento?
Adoro a possibilidade de poder escolher o que você quer assistir dentro de um festival e não ter apenas um palco funcionando por vez. Sei que pode ser, às vezes, um pouco frustrante ter que escolher, mas festival é isso – fazer escolhas, curtir metade de um show para ver algo que role ao mesmo tempo, curtir outras experiências e ambientes. Eu estou no momento bem apaixonada pelo KMKAZE, que traz essa idéia de palco 360º e sons bem diferentes da eletrônica.
Como a curadoria do palco KMKAZE escolhe os artistas e quais são as características distintas que eles trazem para o festival?
Convidei a curadora e produtora musical IDLIBRA para fazer essa curadoria do palco. Sempre quis ter mais pessoas trabalhando curadorias comigo e ela é uma artista que vem fazendo muita pesquisa, além de rodando muito o mundo, lançando sua música também, etc…
Então, claro que ela tem as nossas limitações, sempre financeiras, para fazer o palco acontecer, mas isso é parte da diversão também! Acho que é uma oportunidade de ver trabalhos tão diferentes ali no palco, além de encontros. Uma coisa que rolou e que achei foda foi trazer selos diferentes que vem atuando na cena local para o festival.
Você mencionou que o palco KMKAZE destaca a nova cena nordestina e nacional. Como esse palco contribui para a promoção de artistas emergentes?
Ele parece ser um dos palcos mais democráticos que tem, além de ser 360º, ele é mais baixo e você fica mais em contato com o público. Mas festival também tem as suas ondas, uma hora tá com o palco entupido e outra hora está mais tranquilo. Vai um pouco também do que está rolando em volta e da programação ali, mas a experiência nele é sempre incrível.
A Batalha da Escadaria é uma parte única do festival. Pode nos contar mais sobre como ela se encaixa na programação e sua importância para a cena hip-hop local?
Esta será a segunda vez da Batalha da Escadaria na programação do Coquetel Molotov. A primeira vez foi nos nossos 15 anos e eles estavam completando 10 anos. Agora estamos nos 20 anos e eles nos 15. Não sabia direito onde eles iriam apresentar no festival e quando Libra veio com a idéia que também já estava confabulando, tudo casou.
Então, vai ser um momento incrível de batalha e poder acompanhar isso bem de perto, vai ser único. Sei que estão levando umas meninas para batalhar, temos muito essa preocupação em ter mulheres ocupando todos os espaços e fiquei muito animada com isso.
Qual é a importância de apoiar e promover a música experimental e independente no Brasil através do festival?
Acho muito importante porque é uma vertente da música que em geral é super nichado e tem pouco espaço em locais maiores. Então, eu adoro subverter de alguma forma as estruturas e ter esses artistas no meio da programação. Antes, quando o festival era dentro de um teatro, era mais divertido ver essas reações; hoje, com tantos palcos rolando ao mesmo tempo, muito do público está ali pra conhecer a música ou já é um curioso e não choca tanto. Queria ter um palco só voltado para isso, quem sabe no próximo ano?
Organizar um festival é um empreendimento complexo. Quais são alguns dos maiores desafios que a equipe do No Ar Coquetel Molotov enfrenta ao colocar o evento de pé?
Financeiro, é sempre essa a maior questão, porque no fim a grana resolve qualquer problema… ou quase. Mas realizar um festival em Pernambuco, um dos poucos estados do Nordeste sem lei de Mecenato, é quase impossível. Realmente, eu não sei como fazemos isso há tantos anos e ainda estamos vivas e com saúde. É muito desgastante, mas o prazer de estar fazendo cultura sempre supera. E temos marcas que acreditam na arte e nos festivais de fomento como Natura, Devassa, Nubank, e a Prefeitura. Mas é complexo, a conta raramente fecha.
Como o festival se adaptou aos desafios apresentados pela pandemia COVID-19 e como isso afetou a organização deste ano?
Eu acho que tivemos uma “facilidade” para nos adaptar, sempre brinco que quem faz festival faz gincana. Sabemos lidar com imprevistos! Foi uma época um pouco excitante por estar elaborando algo tão diferente, pro digital. Tivemos a oportunidade de criar um festival imersivo, depois uma série, depois um metaverso. Fomos meio pioneiros em muita coisa. Fizemos até NFT!
Mas ficar inovando o tempo todo é um pouco cansativo também e logo as possibilidades de financiamento ficaram limitadas e o público já cansado das telas. Creio que o maior desafio pós-pandemia tem sido lidar com o boom dos festivais, a alta dos cachês, os custos da logística terem triplicado, como também da estrutura. Impressionante como o nosso orçamento mais que duplicou pós-pandemia e perdemos muitas empresas e mão de obra qualificada.
À medida que o festival entra em sua terceira década, quais são os planos e visões para o futuro do No Ar Coquetel Molotov?
Ai, essa é uma boa pergunta… Penso muito em mudar completamente a nossa experiência, ainda mais diante do que está rolando no mercado. Mas penso que não estou preparada para divulgar isso ainda. Sei como somos pioneiros e não quero que ninguém faça antes de nós! [ri]
Por fim, o que você espera que o público leve consigo após participar do No Ar Coquetel Molotov deste ano? Qual é a mensagem que você espera transmitir através deste evento comemorativo?
Ah, espero que consigam levar uma grande experiência musical. Talvez seja isso que esteja faltando nesses festivais todos que tem rolado: MUSICA!
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