Quanto escutei pela primeira vez o álbum Coffee Gold Sugar Cane, disco de estreia do músico Flavio Lira, me vieram à cabeça várias frases dos “Princípios da Música Universal” — criados pelo genial Hermeto Pascoal e transcritos por sua esposa, a também música Aline Morena. Derrubar fronteiras, misturar sem preconceito, estar aberto às influências naturais, usar a teoria a favor da música… [highlight color=”yellow”]Tudo parece ter sido aplicado ao disco, ainda que indiretamente[/highlight].
Lançado de forma independente, Coffee Gold Sugar Cane oferece uma miscelânea de ritmos latinos, música brasileira e jazz fusion, que soa tanto latino-americana quanto universal. O contrabaixista, compositor e arranjador campineiro (“Mas musicalmente eu me considero curitibano”, diz), Lira se aventura, no melhor estilo DIY, em uma viagem pelas partes de baixo da América e explora a cultura de toda uma região, sem se prender a rótulos ou gêneros — apenas ao bom gosto.

Entrevistamos o músico para saber mais sobre esse trabalho. Confira como foi a nossa conversa!
A Escotilha » O Coffee Gold Sugar Cane é um disco que se aproxima bastante daquele conceito de Música Universal, do Hermeto Pascoal — especialmente porque ele fala várias línguas e pode se encaixar em diversas “gavetas”. Pode ser considerado música instrumental, jazz fusion, música latina, música brasileira. Essa fusão de gêneros é intencional ou é um reflexo natural dos seus estudos e das influências ao longo da carreira?
Flavio Lira » Foi uma intenção e foi também uma consequência natural do que eu venho fazendo. Venho trabalhando bastante com esses estilos de música — a música brasileira, a música latina e o fusion. Mas para mim é muito importante enfatizar isso na música. Acho que a música latina como um todo, a brasileira e a hispânica, elas têm muitos elementos em comum que merecem ser trabalhados em conjunto e a fundo. Acho que esse é um caminho muito importante pra inovação na música e é uma das veias em que eu quero seguir trabalhando.
O título do disco chama muito a atenção porque são elementos que remetem bastante a algumas das riquezas naturais da América Latina. Como surgiu esse nome “Coffee Gold Sugar Cane”? A ideia é representar essa fusão latina e homenagear essas riquezas que a nossa região possui?
É isso mesmo. Retornando ao assunto de unificar os conceitos da música latina — incluindo a brasileira —, eu procurei algum título que conseguisse ter elementos que juntassem todos esses países. E também tem essa referência de que, normalmente, o pessoal pensa “ah, isso aí é commodity que os colonizadores exploraram desses países”. Mas, em primeiro lugar, essas riquezas que estavam aqui fizeram parte dessas culturas. Em primeiro lugar elas estavam aqui e, se foi mal usado ou explorado, são riquezas que daqui e que são desse povo. E é isso que eu quero enfatizar.
Você fez praticamente tudo no álbum: produziu, arranjou, fez direção musical, tocou baixo… Qual foi tamanho desse desafio pra você e qual a sensação de ver a obra pronta agora, lançada para o mundo?
Foi um trabalho “maratônico”. Produção, arranjo, direção, organização, compra de comida nos breaks da gravação pra todo mundo (risos). Teria sido bom ter mais gente para ajudar, mas às vezes é assim que a gente tem que fazer. E foram centenas de horas de trabalho. Eu uso um software para fazer o tracking das horas de trabalho, tanto de edição quanto de arranjo, e passaram pra lá das trezentas horas, somando tudo. E acho que vale a pena. Eu estava até comentando com um amigo, sobre como foi trabalhoso, mas aí ele falou “É, coisa boa — coisa pra valer — dá muito trabalho mesmo”. Não tem como ser diferente. E é bom demais ver o resultado, eu tô bem feliz com ele e agora é botar esse trabalho pra circular.
Um dos momentos mais legais e surpreendentes do disco é quando chega aquele arranjo arrocha para “A Rã”, do João Donato. O arrocha é um gênero que, no Brasil, o pessoal não vê muito bem. É considerado, às vezes, um ritmo “menor”, popularesco demais. Queria saber como você chegou a essa ideia?
Acho que a música latina como um todo, a brasileira e a hispânica, elas têm muitos elementos em comum que merecem ser trabalhados em conjunto e a fundo. Acho que esse é um caminho muito importante pra inovação na música e é uma das veias em que eu quero seguir trabalhando.
Quando eu estava morando em Boston, devido à cena, por ter muito brasileiro que gosta de sertanejo, eu acabei começando a tocar sertanejo também. E acabei começando a gostar, aprendendo a tocar — porque você não pode desprezar nenhum estilo. Todos eles têm um desafio, as suas características, e pra tocar direito tem que se aprofundar um pouco. E aí acabei começando a tocar o arrocha também.
Eu acho que os músicos, instrumentistas, não podem renegar nenhum estilo. Os cubanos fazem muito isso: as músicas deles começam com uma cumbia e aí vai para outras coisas, eles não têm nenhum preconceito com ritmos e isso contribui para acrescentar mais para a música deles. E, na verdade, por mais que muito da música feita no arrocha hoje em dia seja super simples, tanto harmonicamente quanto em termos de letra, se você pegar esse material e realmente explorar bem, dá pra fazer coisas muito interessantes a partir disso.
Você estudou música em Curitiba, por bastante tempo, e foi morar nos EUA, continuar a estudar e investir na carreira. Como foi esse processo? Por que resolveu sair daqui e qual foi o objetivo em sair pela primeira vez?
Eu me formei na Federal do Paraná em 2007 e fiquei até o meio de 2013 trabalhando em Curitiba. Mas desde que saí da Universidade eu já tinha essa intenção de estudar fora ou talvez ir pra outra cidade como São Paulo ou Rio, só por uma mudança de cenário mesmo, ir para um cenário maior. Acabou dando certo de ir para Boston e agora eu tô em Nova Iorque, mas é um trampo de resistência mesmo, porque é muita burocracia. Tem que traçar um plano a longo prazo, pra fazer a papelada toda, as audições… Por exemplo: eu tive que fazer duas audições para a Berklee, na primeira não consegui uma bolsa suficiente, e na segunda foi melhor.
E como é a carreira do músico profissional aí?
A gente tem uma tendência de achar que “lá fora” é sempre uma maravilha, mas não é muito diferente. A carreira do músico está parecida em tudo quanto é lugar. O que tem aqui, e eu posso afirmar com certeza, é mais diversidade de estilos, em termos de ter músicos de todos os gêneros em um nível muito alto.
Você tocava baixo e cantava pelos bares do Largo da Ordem fazendo covers da banda Death, de death metal. Depois de alguns anos, já no curso de música da UFPR, tocava samba e samba rock no Os Milagrosos Decompositores e música cubana no El Merekumbé. E depois ainda organizou a Caçarola Orquestra de Baixos, um sexteto de contrabaixos. O que te impulsiona a estar sempre mudando? Você se sente confortável com a sua música hoje e com a trajetória que te levou até ela?
Estilo, pra mim, nunca foi uma restrição. O que eu sempre quis foi tocar com músicos bons e estar sempre crescendo, ser desafiado pela música que eu toco. Fui trafegando um pouco e… Não que o metal e os gêneros que eu não toco mais não sejam desafiadores — como comentei antes, qualquer estilo que você vá tocar tem seus desafios para fazer direito. Mas eu acabei me identificando bastante com a música brasileira, com o samba, o choro e, depois, com a música latina e decidi me aprofundar nisso. São estilos que têm muito espaço para crescer e coisas para aprender por umas cinco vidas. Mas também tô sempre buscando, tocando música americana aqui, tocando pop. Sempre tem a acrescentar.
E, pra finalizar, quais são os próximos passos para apresentar essa obra pro público? Tem planos para turnê? Como vai ser a divulgação a partir de agora?
O que eu concluí agora, lançando o disco, é que ele é uma semente. E tem que regar muito e tem que trabalhar muito para divulgar o disco pra fora — pra fora, digo, pra fora do meu quarto. É um lançamento constante, não é um show de lançamento que vai fazer todo mundo ouvir o disco. Ainda não tenho turnê marcada, mas estou conversando com gente que vai fazer as relações públicas, fazer uma publicidade do álbum e mandar pra revistas, mandar pra blogs, pra sites.
Aqui tem uma indústria disso: você não consegue mandar diretamente para uma revista. Precisa pagar um publicist e ele faz contato com todas essas plataformas. É uma maneira mais garantida de chegar. Devo começar isso em janeiro, vou imprimir as cópias físicas do CD em janeiro também. É isso. A semente tá plantada e agora é seguir regando.
E existem planos de inscrever o disco em premiações de música?
Vou tentar submeter o disco ao Grammy Latino. É uma possibilidade sempre muito pequena, mas sonhar não custa nada.