Reza a lenda que o Itamar Assumpção, nos idos da década de 1980, uma vez fora detido na rua com um gravador. Na cabeça da polícia, negão, carregando um gravador, em raciocínio rápido: era ladrão. Ele ficou em cana um tempo. Aquele gravador era do escritor paranaense Domingos Pellegrini, que foi até a delegacia resgatar Itamar da confusão toda. Pellegrini olhou para o objeto e falou: “pô, esse gravador é isca de polícia!”.
Itamar Assumpção era o próprio “isca de polícia”. Vestia-se de forma extravagante e tinha uma postura contestadora, inquieta, ácida. Chamava atenção. “Andávamos muito juntos e tomávamos gerais da polícia quase que diariamente”, me conta Paulo Lepetit, baixista que acompanhou o Nego Dito por toda sua carreira musical integrando a Banda Isca de Polícia. “Estamos falando de anos 80, quando a repressão era muito forte principalmente quando negros e brancos andavam juntos; diria que é um nome (da banda) que reflete esta condição muito claramente”.
Décadas depois, a repressão policial discriminadora por cor e classe (nesta ordem) continua viva e pulsante. “Libertem Rafael Braga!” é o grito recorrente das ruas nas últimas semanas. Itamar já não está mais entre nós. Mas sua linguagem própria, criada no movimento da Vanguarda Paulista há mais de trinta anos e que fora ignorado pelas rádios e pela televisão em um primeiro momento, segue reverberando. E é tão consistente que motivou sua banda a nunca sair dos palcos.
Em abril deste ano, a Isca de Polícia lançou seu primeiro disco autoral sem o paulista do Tietê, crescido e criado em Londrina (PR). O álbum Isca – Vol.1 carrega composições de Arnaldo Antunes, Vange Miliet, Alice Ruiz, Arrigo Barnabé, Zeca Baleiro, Carlos Rennó, Ortinho, Tom Zé, Péricles Cavalcanti e do próprio Paulo Lepetit, que conversou com exclusividade para A Escotilha. Confira a entrevista abaixo.
A Escotilha: Como a Isca de Polícia cruzou o caminho de Itamar Assumpção?
Paulo Lepetit: A Isca foi criada por ele. Quando lançou o primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu (1980), ele montou a banda para fazer os shows.
Após a morte de Itamar em 2003, vocês seguiram fazendo shows e a banda nunca parou de fato. É verdade que após esse período, a Isca passou a se apresentar com maior frequência? Por quê?
A partir da morte dele passamos a receber convites para homenagens. Depois veio a “Caixa Preta” lançada pelo Sesc (box com a discografia completa de Itamar Assumpção & Banda Isca de Polícia) e o filme Daquele Instante em Diante, que aumentaram bastante o interesse pela obra dele. Já vinha acontecendo um descoberta pelas novas gerações que passaram a se interessar muito pelos artistas da Vanguarda Paulista. O Itamar era um pouco avesso a fazer muitos shows, portanto fazíamos bem menos do que estamos fazendo nos últimos tempos.
Como foi o processo desde a perda de Itamar até a (re)organização da banda e a decisão de gravar um disco autoral?
A banda teve várias formações na sua trajetória. Quando começamos a receber convites para tocar de novo fomos fixando numa reunião de componentes que passaram pela banda em diferentes momentos. Primeiramente com o lendário baterista Gigante Brazil, que faleceu também algum tempo atrás e foi substituído por Marco da Costa, que também já havia tocado com a gente. Completam a banda: Jean Trad e Luiz Chagas nas guitarras, Vange Milliet e Suzana Salles nas vozes, além de mim no baixo e direção musical.
Qual foi o ímpeto para produzir este novo trabalho?
Decidimos gravar um trabalho autoral impulsionados pela cobrança desta nova geração, que passou a nos acompanhar e perguntava pelos discos da Isca. Na verdade o que tínhamos até então eram discos do Itamar acompanhados pela Banda. Insistiram tanto neste questionamento que resolvemos produzir estas parcerias com compositores admiradores de nosso trabalho e também admirados por nós.
Você esteve com Itamar desde o início da Isca de Polícia nos anos 80 e, portanto, participou ativamente da criação da linguagem da Vanguarda Paulista, que continua extremamente contemporânea e inspiradora para novos artistas. Como você lida com a missão de levar essa linguagem para frente? Há uma renovação do estilo ou uma preocupação de manter a identidade do grupo?
É verdade. Itamar propôs a linguagem e fomos desenvolvendo-a juntos ao longo deste tempo. A banda absorveu e alimentou tanto esta linguagem que se tornou praticamente sua proprietária. E por ser uma linguagem de vanguarda, foi feita para ser compreendida anos após sua criação. Portanto, continua sendo inovadora além de nunca ter parado de evoluir.
Em 2012, o Isca de Polícia se apresentou em um evento universitário para mais de 5 mil pessoas na USP – e foi um sucesso total entre o público com uma média de 20 e poucos anos. O que vocês pensam sobre soarem como novidade para ouvidos mais jovens, mesmo trabalhando nessa linguagem há mais de 30 anos?
É uma linguagem que continua sendo desenvolvida. Tem os elementos do começo, mas outros elementos foram sendo incorporados resultando em um som atual e com frescor.
O que você considera vanguardista na música brasileira hoje?
Acho que não temos nada que possa ser considerado vanguarda neste momento, pelo menos que eu tenha conhecimento. Não vejo nada que cause tanto espanto como outros movimentos fizeram na musica brasileira como Bossa Nova, Tropicália, a geração de Novos Baianos e Pessoal do Ceará e a Vanguarda Paulista.
Há previsão de lançamento do Isca – Volume 2 e de shows em outras cidades do Brasil? O que podemos esperar desse segundo disco?
O Volume 2 já está praticamente concluído, faltando apenas algumas gravações e a mixagem. Resolvemos dividi-lo justamente porque recebemos um número grande de parcerias que inviabilizaria colocar tudo num só. E elas continuam chegando o que nos faz começar a pensar em um Isca-Volume 3. Queremos tocar em outras cidades, claro. Já fomos ao Rio e algumas cidades do interior de São Paulo. Queremos muito voltar a Curitiba , onde sempre fomos muito bem recebidos.
Serviço | Isca de Polícia no Auditório Ibirapuera (São Paulo)
Show de lançamento do disco novo (Isca – Vol.1) e alguns dos maiores clássicos de Itamar Assumpção. No palco, os convidados Arrigo Barnabé, Tulipa Ruiz, Liniker e os Caramelows e Os Amanticidas.
Onde: Auditório do Ibirapuera | Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Parque do Ibirapuera, São Paulo/SP;
Quando: Sexta, 11 de agosto, às 21h;
Quanto: R$ 20 e R$ 10 reais (meia-entrada);
Classificação Indicativa: livre para todos os públicos.