Vai ter bicha no rap, sim! No mês do orgulho LGBTI+, nasce a Quebrada QUEER, o primeiro grupo gay de rap do Brasil e América Latina. O coletivo queer de cinco artistas negros e independentes surgiu na periferia de São Paulo, a partir da necessidade de espaço e acolhimento na cena.
O grupo desafia o binarismo de gênero e adota o termo inglês “queer”, que pode ser traduzida para o português como “transviado”, e teve sua conotação agressiva contra a comunidade LGBTI+ ressignificada na década de 1980 por movimentos sociais e teóricos, para ser usado como uma palavra de empoderamento e como estratégia de luta contra a heteronormatividade. É a chamada cultura queer, que pode ser entendida melhor com leituras sobre a Teoria Queer.
Os artistas Murillo Zyess, Tchelo Gomez, Guigo, Lucas Boombeat e Harlley compõem o coletivo e unem rap e hip hop como base para seu som, somando outros estilos negros, como R&B, afropop e dancehall. O single com nome homônimo do grupo, lançado no dia 4 deste mês no canal Rap Box no YouTube, já conquistou mais de 630 mil visualizações.
Para a Quebrada QUEER, o sucesso da música é reflexo da quantidade de pessoas que se sentem oprimidas e que se identificam com as vivências e conceitos trazidos pelos cinco MCs. São versos de auto-afirmação, de amor e de crítica ao machismo, ao racismo, à homofobia e à intolerância religiosa. E, claro, crítica ao preconceito de MCs com a comunidade LGBTI+ dentro do rap. Afinal, o rap é espaço de protesto e “MCs de verdade não desejam sociedades sem diversidade”.
Confira a íntegra da entrevista com a Quebrada QUEER
Escotilha >> Como que surgiu o Quebrada QUEER?
Quebrada QUEER >> O Quebrada pra a gente nasceu da necessidade de espaço e acolhimento na cena! Todos nós com nossos trabalhos individuais sempre encontramos dificuldades de viabilizar nossos conteúdos nos eventos por falta de espaço. Era como se toda vez que avançávamos com um trabalho, éramos lançadas pra trás. Foi aí que no meio de tanta recusa resolvemos unir forças.
Eu quero dizer, existia uma sensação muito grande de solidão e abandono dentro do nosso próprio universo e, entre uma conversa e outra, descobrimos que todos nós tínhamos essa solidão em comum, e foi aí que resolvemos nos fortalecer, e isso se deu através de algumas parcerias, como entre mim (Guigo) e Murillo, Harlley e Murillo, Tchelo nos convidando pra eventos dos quais participaria e assim por diante. Percebemos que havia uma conexão bacana e resolvemos nos unir! Afinal de contas, estávamos todos no mesmo barco. E foi assim que nasceu a ideia, que hoje chamamos de Quebrada Queer!
Como é desafiar o binarismo de gênero?
Acreditamos muito que ainda há muito o que se falar com relação a esse tema. Há muito o que se discutir e poucas pessoas corajosas, a ponto de questionar a si sobre o assunto! Acho que toda vez que colocamos um tema como esse em pauta, tiramos um pouco dessa casca hipócrita que as pessoas insistem em fazer vista grossa. Na realidade, acredito que não há mais tanto tempo pra ser didático! As pessoas precisam entender que tudo o que não faz parte da sua realidade não compete aceitação, mas sim respeito e empatia.
O vídeo foi lançado no dia 4 deste mês e já tem mais de 630 mil visualizações no YouTube, vocês esperavam tanto sucesso?
Na realidade, a gente esperava, sim! Sabíamos o conteúdo que tínhamos em mãos, trabalhamos muito nele, demos todo nosso sangue nesse trabalho! Sabíamos que seria algo que com certeza iria repercutir! Mas, sabe o que é mais incrível nisso tudo? Que as pessoas ainda se choquem com gays ocupando espaços, que deveriam ser normais, de qualquer pessoa! Isso foi algo bom? Foi, sim, com certeza. Mas também é um grande reflexo de como temos uma sociedade opressora, racista, homofóbica e intolerante. Afinal, os números são só reflexo da quantidade de pessoas que sentem oprimidas de alguma forma e se identificam com o que dissemos!
Junho é o mês do orgulho LGBTI+, como vocês enxergam a representatividade da comunidade na cena do rap e do hip hop? Existe muito preconceito ainda nesses movimentos? Como está sendo a receptividade de vocês por outros MCs no rap?
Essa representatividade nunca existiu. Não por falta de artistas. Há 10 anos, Jup do Bairro já tinha “corpo sem juízo”, hoje podemos citar 50, 100 rappers representantes de todas as siglas. O que acontece é que nunca tivemos passagem pra mostrar mais, oportunidade, sabe? Essas coisas sempre são negadas, e precisamos nos provar 3 vezes melhores pra conseguir uma fresta! Aí fica difícil ter representatividade.
O rap criou na comunidade LGBTQ uma ferida que ficou por anos exposta, o que nos criou resistência ao estilo, à música, à cultura hip hop. Fez com que nossa comunidade não se sentisse bem-vinda, não se sentisse parte disso. Nós todos, artistas LGBTQ na cena, estamos tentando cicatrizar essa ferida aberta, e aos poucos isso será feito.
A receptividade tem melhorado e acredito que deixamos uma fenda na história do rap, fenda essa que vamos cuidar pra que nunca mais seja ocultada. E pra que nossos sucessores sintam orgulho da obra que fizemos nesse tal rap que dizem por aí!
O Brasil é o país que mais mata LGBTI+ no mundo, vocês acham que a música e, principalmente o rap, pode ter um papel de conscientização e de incentivo ao respeito com o diferente?
Procuramos colocar em nossas letras de forma natural a nossa vivência, que consequentemente acaba entrando nessas questões citadas. E dentro dessas questões, tanto racial, quanto econômica, de gênero e orientação sexual, ainda existem inúmeras maneiras e assuntos que ainda podemos falar. Fora que somos gays, mas também passamos por outras situações fora do tema LGBTI+ no qual se conecta com qualquer pessoa, seja ela LGBTI+ ou não.
Guigo começa a música falando que o bonde das femininas chegou. Como vocês enxergam o tratamento de gays que trazem mais traços ditos femininos na sociedade e na própria comunidade gay?
Esse tratamento sempre foi de exclusão! E a maioria, inclusive no meio LGBTQ, não percebe que essa exclusão tem nome! E se chama machismo. É como se qualquer coisa que remetesse ao sexo feminino fosse menor, inferior ou pouco interessante. A realidade é que ainda existe uma possibilidade grande pra gays padrão! Sabemos que as gays femme são sempre alvo de todo o tipo de preconceito e carregam um alvo apontado em suas cabeças! E se essa gay for preta e de periferia temos problemas ainda maiores a serem discutidos! O que eu posso dizer é que isso só me faz ainda mais forte, me dá mais vontade de fazer o que faço e ser quem sou!
Na carreira solo de cada um, vocês já traziam a temática LGBTI+. Querem contar um pouco sobre o trabalho de vocês antes do Quebrada Queer?
Todos nós já trabalhávamos em projetos solos e vamos continuar paralelamente, pois alguns trabalhos já foram iniciados como clipes ou músicas novas. Claro que, nesse momento, a prioridade e foco dos cinco ficou para o QQ. Nada será perdido. Inicialmente, nosso repertório é uma junção dos nossos trabalhos, o que agregou ainda mais como um todo deixando nosso set diverso e ainda mais empoderado!
O single “Quebrada Queer” fala sobre questões raciais, econômicas, de gênero e de orientação sexual. Os próximos trabalhos seguirão o mesmo caminho? Tem previsão de lançamento de novas músicas? Já estamos ansiosxs.
Estamos trabalhando em novas músicas! Explorando musicalidade e vendo o que descobrimos no meio dos processos, não podemos afirmar qual vai ser o resultado, mas o caminho até lá tá mostrando uma potência tão forte quanto a primeira. Ainda temos muito o que falar sobre diversos assuntos, não nos limitamos, e tá sendo ótimo pensar nisso coletivamente! As criações também serão uma surpresa pra nós.