Parte do que faz com que gostemos de um determinado artista ou grupo está relacionado à nossa capacidade de nos identificarmos com aquilo que dizem as letras. E é justamente isso que faz de Semper Femina, da cantora folk Laura Marling, um álbum para ser ouvido atenção. Sexto álbum da cantora, lançado em 10 de março desse ano, chama muito mais a atenção pela complexidade das letras do que pelas melodias suaves.
Com apenas 27 anos, a cantora e multi-instrumentista inglesa, que, vale a pena mencionar, chegou a integrar o grupo de indie folk, Noah and the whale, acaba chamando a atenção pela maturidade que imprime às canções. Como o próprio título sugere, Semper Femina (sempre mulher, em latim) é um álbum que fala essencialmente sobre natureza feminina e das relações compreendidas nesse universo.
Com referências musicais claramente advindas do jazz, como sugere a faixa de abertura do álbum “Soothing”, Semper Femina é uma grata surpresa, por mais que não seja necessariamente inovador ou revolucionário. A voz delicada de Laura, somada à instrumentação acústica faz do álbum uma audição prazerosa, ao mesmo tempo em que exige um pouco mais do ouvinte do que a mera atenção difusa sugerida por muitos discos que se alternam na trilha sonora de cafeterias alternativas.
A voz delicada de Laura, somada à instrumentação acústica faz do álbum uma audição prazerosa.
O universo feminino abordado pelas canções vai muito além da tradicional relação amorosa, focando em laços familiares, amizades e meras observações do cotidiano. A própria cantora chegou a afirmar que durante o processo de elaboração do álbum fez questão de observar e prestar atenção aos diálogos empreendidos pelas mulheres à sua volta, como a letra de “Always this way” sugere.
Após a linha de baixo marcada e o ritmo introspectivo da primeira canção, “The valley” aparece como um contraponto solar, cheia de harmonias vocais e arranjos de cordas, ajudando a estabelecer um equilíbrio entre dois pólos, entre os arranjos mais soturnos e os mais alegres. Na verdade, o que realmente chama a atenção é a capacidade que Laura Marling parece ter de se aprofundar em temas emocionais e considerados densos ao mesmo tempo que soa suave, doce e apenas ligeiramente melancólica. Em “Wild fire” as influências do folk mais tradicional são quase palpáveis, tanto nos vocais quanto no arranjo, que explora mais elementos de percussão e diferentes sonoridades acústicas.
O título do álbum é oriundo de uma citação da Eneida de Virgilio, varium et mutabile semper femina, que em português seria equivalente a “a mulher é sempre inconstante e mutável”, e a cantora deixa clara sua referência na faixa “Nouel”, talvez um dos pontos altos do disco, ao lado de “Soothing”.
Acompanhada de um violão que, por vezes, ecoa uma certa familiaridade com Eliot Smith, Laura disserta sobre a natureza feminina e parece deixar entrever o que de fato norteia as composições do álbum: “Oh Nouel, you know me well/And I didn’t even show you the scar/Fickle, unchangeable/Semper femina”.
Na verdade, ao concluir a audição de um álbum de folk, a pergunta que normalmente me faço é se de fato terei vontade ouvi-lo novamente ou se ele será relegado ao limbo das trilhas sonoras que uso para escrever, ler e outras tantas atividades que requerem atenção exclusiva, e que acabam convertendo a música em pano de fundo.
Talvez seja possível afirmar que as duas primeiras faixas de Semper Femina salvam o todo de um audição desatenta qualquer, apesar de “Wild fire” e “Always this way” aliarem lirismo e densidade ao potencial melódico do álbum ao mesmo tempo que propiciam um mergulho no universo feminino de Laura Marling.
Mais do que uma experiência exclusiva para pessoas do sexo feminino, a delicadeza da melodia e a sensibilidade das letras servem como um lembrete de que a música, e as artes em geral, permitem com que nos identifiquemos com diferentes sujeitos, em diferentes situações. Assim, Semper Femina, mais do que um álbum, é uma janela aberta de possibilidades, de diferentes pontos de vista, aguardando para que os exploremos, para que enfim vejamos as coisas sob um prisma diferente.