Memórias do Fogo é um disco difícil de digerir. As faixas são longas, as letras densas e politicamente carregadas e os arranjos completamente imprevisíveis — indo do rock progressivo ao hardcore, do rap à ciranda, e por aí vai. Mas não dava para esperar nada diferente dos cariocas da El Efecto.
Com 16 anos de carreira e cinco discos lançados, a característica mais marcante da banda sempre foi a criatividade: a partir de uma mistura improvável de diferentes referências e gêneros musicais, eles constroem uma sonoridade única. Te desafio a achar alguma música remotamente parecida com a faixa “O Encontro de Lampião com Eike Batista”, do excelente Pedras e Sonhos — último álbum de inéditas que lançaram em 2012.
Tanto a construção das letras como dos arranjos das canções do grupo, esbanjam uma inventividade e zelo que funcionam como uma brisa de ar fresco na cena musical brasileira. Talvez “brisa” seja a palavra errada. Se depender de Memórias do Fogo, a El Efecto está mais para furacão ou tempestade.
O nome do disco, referência à trilogia de livros de Eduardo Galeano, já dá o tom combativo das sete canções que compõem o álbum. Tal qual o escritor fez com a América Latina, a banda escancara um Brasil carregado de injustiças e contradições.
Tanto a construção das letras como dos arranjos das canções do grupo, esbanjam uma inventividade e zelo que funcionam como uma brisa de ar fresco na cena musical brasileira.
Essa temática aparece em diferentes roupagens ao longo do disco. Seja quando eles falam de racismo, desigualdade social, exploração no mercado de trabalho, apropriação cultural, meritocracia ou extermínio da população negra. São tópicos difíceis de se tratar na forma de música: como eles são muito densos, há sempre o risco de sobrecarregar o ouvinte.
Mas aí que mora o trunfo da El Efecto. Eles conseguem narrar situações de uma maneira muito efetiva, ao misturar um certo nível de sarcasmo, com um senso afiado para construir metáforas e cenários completamente palpáveis. O objetivo aqui é descomplicar e expor esse temas da forma mais compreensível possível. Ao contrário de outros artistas que tentam “academizar” o debate ao lidar com esse tipo de assunto, a El Efecto apresenta uma lírica que bebe das tradições e regionalismos de ritmos clássicos brasileiros. É uma poesia “simples”, porém muito rica e significativa.
Musicalmente, o disco é impecável. A banda parece ter encontrado o equilíbrio perfeito entre os gêneros nacionais e suas influências estrangeiras. Memórias do Fogo, ao contrário dos álbuns que o antecederam, finca suas raízes no samba, chorinho, ciranda e música negra (muito bem representada em faixas como a bela “Chama Negra”). Esses ritmos se alternam de maneira improvável, porém ainda natural, com riffs potentes e tempos quebrados típicos do rock progressivo.
É possível pinçar algumas das referências do grupo. A teatralidade das canções e a estrutura dividida em várias “seções”, lembra bandas como Pain of Salvation e, às vezes, até Opeth. Assim como as harmonias vocais, em certas passagens, parecem inspiradas pelo trabalho do Queen. Mesmo assim, El Efecto nunca soa como cópia de ninguém. Pelo contrário.
Basta ouvir “O Monge e o Executivo” (referência a um livro de autoajuda empreendedorista) para ter certeza disso. Misturando elementos de música folk oriental com rock, dub, rap e um humor ácido, a banda critica a apropriação (dos clichês) da cultura zen oriental pelas empresas e mercado financeiro. O que rende alguns dos melhores momentos líricos do disco, como: “Foi um gerente iluminado pela semente da inovação / Calculou que o espírito elevado dinamiza a produção / Jornadas de 14 horas ao som de mantras do Tibet / Assim a raiva se controla, então o império segue em pé”.
O álbum flui como um rio que vai ganhando força até, enfim, desaguar em “Incêndios”. A faixa, que funciona quase como um complemento à música anterior (“Trovoada”), é a mais agressiva do disco e consegue ao mesmo tempo resumir e concluir o conceito desse trabalho.
A mensagem que a banda passa é clara: hoje, quem vive em bem-estar está desconectado, e tem sua parcela de culpa do que está acontecendo ao nosso redor. É preciso o desconforto, o incômodo e a revolta que surgem quando buscamos entender a dor coletiva. É necessário assumir uma posição, entender onde entramos nessa história toda. É necessário se revoltar. Quem cala acaba sendo conivente. Mas eles dizem isso muito melhor do que eu:
“Não há solução dentro do teu conforto {…} Abre o sentido da angústia / Ao drama da dor coletiva / Sopro da chama que acende, em meio à farsa não se rende, um aviso de incêndio indica uma saída / Desce até a origem das coisas, encara a ferida que liga a desgraça a você”.
Memórias do Fogo é o típico disco que já nasceu clássico. Não bastasse a qualidade inegável das letras, composições e produção do álbum, há um fator que dá ainda mais peso a essa obra: o contexto. Assim como To Pimp A Butterfly, de Kendrick Lamar, ele não poderia ter sido lançado em outro momento. Este álbum é o reflexo de tudo que está acontecendo em nosso país. Um trabalho necessário, urgente, estimulante e incômodo. Não deixe passar batido.