“Senhorita Cora”, conto de Julio Cortázar presente em Todos os Fogos o Fogo, é uma delicada e sensível história sobre um jovem doente, sua mãe e uma enfermeira por quem o jovem nutre paixão. Nele, Cortázar trabalha com vários personagens narradores, às vezes dentro de um mesmo parágrafo. O autor gosta de jogos, e se diverte conosco ao não dar caminhos óbvios para a compreensão de quem é quem.
Ao mostrar os mesmos fatos na perspectiva de diferentes personagens, Cortázar implode a linearidade da história, que volta no tempo quando um personagem reconta algo já contado.
O cruzamento lógico entre a obra de Julio Cortázar e a banda curitibana Cora talvez aconteça muito mais em minha cabeça do que propriamente através de riffs. Entretanto, consigo fazer a analogia sem considerar que possa estar tropeçando no caminho. Afinal, o que a música faz frequentemente que não recontar histórias, por vezes valendo-se de um mesmo gênero?
A sonoridade do grupo formado por Katherine Finn Zander, Kaíla Pelisser, Sayuri Kashimura e Felipe Gomes busca a concepção de um registro imaculado, uma trilha que tende a satisfazer as mesmas necessidades, recorrendo para isto às experimentações sonoras. A Cora faz isso de maneira notável e consistente, fazendo do ritmo de suas composições uma marcha rumo à expansão de sensações, um espaço onde o que sentimos é essencialmente mágico. É realmente mais literário que teatral, ainda que vê-las em ação dê a sensação de um trabalho corporal e mental gigantesco. É algo telepático, mais sensorial e menos visual.
A Cora faz isso de maneira notável e consistente, fazendo do ritmo de suas composições uma marcha rumo à expansão de sensações, um espaço onde o que sentimos é essencialmente mágico.
Ainda elaborando o primeiro registro em estúdio – uma urgência, diga-se –, suas composições já conhecidas (como as presentes no SoundCloud do grupo ou as assistidas na UV Night 17, no 92 Graus, em dezembro passado) têm camadas ligeiramente escuras, um tanto psicodélicas, com arranjos que evidenciam as linhas de baixo e o reverberar da guitarra, um serpentear de notas que chacoalham o público de maneira quase introspectiva, recordando nos melhores momentos o Beach House ou Grimes.
Espiritualmente, o trabalho da Cora é um reflexo milimétrico das intenções de Katherine e Kaíla, dupla responsável pela formação da banda. É um conjunto de narrativas que, tal qual Cortázar, fogem de caminhos óbvios, sugerindo muito mais do que evidenciando, convidando ouvintes a serem parte da obra, a uma construção a várias mãos, uma mistura familiar de tons quentes e sentimentos frios e vice-versa. Por fim, as semelhanças entre o escritor argentino e a banda curitibana não são meramente superficiais, não há como prestar atenção à banda de outra forma.
É um impacto que ecoa ad eternum, deixando a nós a missão de criar teias que permitam com que compreendamos melhor o que querem dizer e o porquê disso ter tanta ligação conosco, com a essência de sermos humanos. Você invariavelmente irá se lembrar dessas palavras e, por graça dos riffs da Cora, irá lembrar de suas canções. Um trabalho tão surpreendente e carregado de generosidade como a arte deve ser.
Que o caminho entre os palcos e a concretização de um EP (como prometido) ou um full-length (como creio que deveriam) seja breve. O tempo que esperamos já foi o suficiente para maturar a necessidade deste registro.
Ouça singles da Cora no SoundCloud
https://soundcloud.com/coracoracora