Janeiro no Rio de Janeiro: viajei de última hora para o Rio, literalmente correndo atrás de um show que tinha tudo para ser histórico. Uma noite no Circo Voador com a lendária banda pós-punk paulistana As Mercenárias, dividindo palco com ninguém menos que Juçara Marçal e seu Metá Metá. Esse assunto por si só renderia páginas de descrição, mas essa história fica para uma próxima oportunidade.
Volto ao cenário: Circo Voador, 23 de Janeiro de 2017. Pouco antes do início dos shows, uma moça argentina que se apresentou como Lucy perguntou se poderia dividir uma mesa comigo e com minhas amigas. Mal demos uma resposta positiva e Lucy já estava sentada ao meu lado, bebendo uma Gin Tônica (ótima escolha) e tagarelando em portunhol sobre vários assuntos. “O que te fez vir nesse show?”, perguntei curiosa. A portenha era fã d’As Mercenárias desde sua adolescência punk e riot grrrl.
Trocamos algumas figurinhas sobre bandas brasileiras e argentinas, e ao final da conversa pairou no ar uma conclusão em comum acordo: nem brasileiros, nem argentinos, citando apenas dois países da América do Sul, têm uma real noção do que se escuta nos países vizinhos. Se para a maioria dos argentinos, nós ouvimos basicamente Roberto Carlos e Paralamas do Sucesso (e isso por causa das músicas em espanhol feitas pelos Paralamas, o que os tornou conhecidos por públicos de toda a América do Sul), para a maioria de nós, eles transitam entre Gardel e o amável Fito Paez. Y punto.
Essa generalização caricata é uma forma de dizer, a muito grosso modo, que apesar de todas as facilidades do streaming como o Spotify, do YouTube, dos SoundClouds e Bandcamps da vida, continuamos quase ignorantes e sem um real incentivo de acesso a músicas produzidas aqui, logo ao nosso lado. Pra não dizer que não falei das flores: as lojas de discos em Buenos Aires, por exemplo, até possuem relevantes acervos de MPB à venda. Um lojista antigo me disse certa vez, na Calle Corrientes, que Elis Regina e Milton Nascimento eram muito buscados pelos portenhos. Já no Brasil, o que temos em mãos? Não apenas de bandas e artistas da Argentina, mas o que sabemos de produção musical do Paraguai, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia e Colômbia? Para a maior parte das pessoas, quase nada. É preciso certo espírito garimpeiro e vontade de mergulhar nesse riquíssimo e diversificado universo musical para então se descobrir uma centena de pérolas.
La lengua madre es la lengua madre
A língua mãe é a língua mãe, e a partir de uma breve análise, a barreira linguística do Brasil enquanto uma grande bolha falante de português em meio a um continente dominado pelo espanhol é um dos fatores mais emblemáticos para nos isolar culturalmente. Mas a culpa não é apenas do fator linguístico. Em entrevista recente ao jornal Correio do Povo (leia aqui), Fernando Rosa, idealizador e curador do festival El Mapa de Todos, destaca que ainda há uma dificuldade econômica/comercial que impede que essa cena se desenvolva com real integração em território ibero-americano (expandindo o mercado para Espanha e Portugal também). “Na medida em que vamos conhecendo melhor esse cenário, nos damos conta de que as bandas da Colômbia, por exemplo, têm muito mais circulação na Europa e EUA do que por aqui (no Brasil)”, pontua.
A barreira linguística do Brasil enquanto uma grande bolha falante de português em meio a um continente dominado pelo espanhol é um dos fatores mais emblemáticos para nos isolar culturalmente.
Se a indústria fonográfica não ajuda, felizmente nós temos alguns embaixadores da música latina espalhados pelo Brasil. É o caso do apresentador Tomás Ramos, que produz há mais de três anos o programa Rádio Espanha, que vai ao ar todas as semanas na Rádio Mundo Livre FM (Curitiba). O programa traz três blocos de sons 100% em espanhol, muitas vezes apresentando bandas independentes e passando por gêneros como indie rock, punk, hip hop, cumbia, ska, entre outros. O jornalista, produtor e crítico musical Leonardo Vinhas, do Scream & Yell, frequentemente dá destaque a artistas latinos em suas entrevistas e produz belíssimos discos-tributos, convidando bandas dos países vecinos e do Brasil para tocarem versões de músicas já consagradas pelo público brasileiro. Afinal, como sugere um dos álbuns produzidos por Vinhas, “Brasil También Es Latino”.
El Mapa de Todos: catalisador musical
Há exatas sete edições levantando a bandeira da integração musical entre hispanoablantes e lusófonos, o festival El Mapa de Todos, sediado em Porto Alegre, é uma das iniciativas mais interessantes nesse quesito. Com patrocínio da Petrobrás, o evento trouxe, de sua primeira edição até hoje, 96 artistas de 11 países da América do Sul, Central, Espanha e Portugal. Ao lado de Fernando Rosa na promoção do festival, o produtor Thiago Piccoli conta que o Rio Grande do Sul, por ser agraciado com duas fronteiras e estar próximo de duas capitais (Montevidéu e Buenos Aires), tem um contato intenso com a cultura argentina e uruguaia, o que torna o público gaúcho mais receptivo para essa iniciativa.
Quando pergunto se o festival funcionaria em outros estados além do Rio Grande do Sul, Thiago desacredita. “Esse contato (cultural) sempre foi maior aqui do que em outros estados”, diz. “Os argentinos vêm todos os anos para as praias daqui e Santa Catarina, né? Essa história começa aí. Meu avô sempre falava escutava rádios do Uruguai, pois o sinal chegava à casa dele”. Para o produtor, não se pode negar também que ritmos regionais são muito bem recebidos no Pará, Pernambuco, São Paulo, por exemplo. “Mas acho que aqui a gente recebe as coisas em primeira mão (risos)”.
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Thiago Piccoli afirma ainda que o que falta no Brasil é divulgação. “Acho que há interesse, mas pouca gente acredita, e assim o trabalho fica fragmentado. O Rec Beat (Recife) leva um artista por ano lá, a gente aqui (Porto Alegre), em São Paulo volta e meia acontece algum show. Mas fora disso, não se ouve falar”. Segundo ele, se um produtor não se arrisca a trazer alguém da cena independente latino-americana para tocar, ninguém sabe da existência. Existem ações que ajudam, como o Ibermusicas (confira o link no final da matéria), mas ainda é muito pouco. “Falta uma distribuidora forte, divulgação pesada, um meio de comunicação que assumisse a responsabilidade: com certeza mudaria o cenário, sem mídia nada pega. Só festivais e shows esporádicos não sustentam. Mas aí, quem quer investir? As pessoas preferem investir em artistas locais, pois tem retorno imediato”, enfatiza.
Enquanto a dificuldade de acesso e consumo das produções musicais em espanhol no Brasil ainda existe, vale muito a pena acompanhar iniciativas que buscam a difusão desses materiais por aqui. Mas antes de fechar, fica a pergunta: o que você conhece de sons em espanhol, em qualquer gênero? Shakira e “Macarena” não valem, hein.
Descubra novos sons aqui
El Mapa de Todos: https://www.facebook.com/elmapadetodos/
Disco Brasil Tambien Es Latino – selo Scream & Yell, produzido por Leonardo Vinhas. Ouça aqui;
Ibermusicas – programa de fomento à divulgação da diversidade cultural ibero-americana no âmbito musical, estimulando a formação de novos públicos e ampliando o mercado de trabalho dos profissionais do ramo. Acesse: http://www.ibermusicas.org/
Rádio Espanha – todos os domingos, às 19h, na Rádio Mundo Livre (93.9 FM).