Quando Tulipa Ruiz lançou seu disco de estreia, Efêmera, usou-se muito o termo “pop florestal”, neo-gênero que definiria esse pop urbano com um pé nas benfeitorias da mãe-natureza. Há que se esclarecer que o termo não é invenção de Tulipa, ela retirou do encarte de um dos discos de Henrique dos Anjos, violonista que por sua vez havia pinçado o termo de um poema de Edu Planchêz, poeta e letrista carioca. De qualquer modo, não é sobre a etimologia desse termo que quero falar, mas sim sobre como esse epíteto florestal pode se encaixar em outros momentos da nossa música popular.
Pop Florestal enseja esse encontro entre o urbano, o moderno, o pop e o que há de mais brejeiro, mas intuitivo, pé-na-terra de nossa cultura, por isso mesmo, dois discos de estreias de duas cantoras tão distintas e distantes do universo de Tulipa podem muito bem se encaixar neste termo; são elas: Tetê Espíndola e Fafá de Belém. Tetê é reconhecida até hoje por seu hit arrasa quarteirão “Escrito nas Estrelas”, porém, mantém uma carreira sólida de mais de 30 anos de música independente e corajosa. Já Fafá de Belém é figura de risada mítica, que cantou hits românticos nas rádios da década de 1980 e que mantém uma carreira irregular, marcada por momentos de ousadia e outros de monotonia. Seus discos de estreia, Piraretã (1980) e Tamba-Tajá (1976), respectivamente, representam aquilo que seria, ao meu ver, o supra-sumo de qualquer coisa que possamos chamar de “pop florestal” na nossa música popular.
‘Piraretã’ – Tetê Espíndola
![Capa do disco Piraretã, de Tetê Espíndola](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/04/maxresdefault-300x300.jpg)
Tetê Espíndola nasceu no Mato Grosso do Sul (à época, ainda um só estado com o Mato Grosso), e é esse cenário pantaneiro que rege grande parte de sua obra e de suas experimentações vocais. Sempre dita como a Kate Bush brasileira (pelo tom agudo de sua voz), Tetê estreou em disco em 1978, ao lado de seus irmãos, na banda Tetê e o Lírio Selvagem, porém, é com o fim do grupo que a Polygram decide lançar seu primeiro disco solo, Piraretã, trabalho em que vemos toda a potencialidade de sua voz e suas experimentações. Seu trabalho mais ousado viria na sequência, com o estonteante Pássaros na garganta, mas é aqui em sua estreia que vemos esse caráter brejeiro com esses ecos de modernidade, que geram essas associações com a britânica Bush.
Pop Florestal enseja esse encontro entre o urbano, o moderno, o pop e o que há de mais brejeiro, mas intuitivo, pé-na-terra de nossa cultura.
Gravando artistas como Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Carlos Rennó e também seus familiares, Alzira e Geraldo Espíndola, a cantora espalhou-se por esse cenário amplo do Brasil, que vai bem além de qualquer classificação que tente encaixar o disco apenas como “pantaneiro”. Há aqui os ecos dos baianos, do Clube da Esquina e também o prelúdio do que veríamos posteriormente em trabalhos como o de seu conterrâneo Almir Sater. De qualquer forma, é a partir daqui que Tetê se conecta à Vanguarda Paulista, da qual seria uma artista atuante ao lado de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, compositor que aparece pela primeira vez no repertório da artista aqui em Piraretã, com a faixa “Tamarana”, espécie de poema neoconcreto.
Arrigo Barnabé, por sua vez, é responsável por cunhar um outro termo para classificar Tetê e seus irmãos: o sertanejo lisérgico, termo bastante condizente com o final da década de 1970/início dos anos 80. O sertanejo lisérgico se caracteriza por esse olhar entregue e distinto sobre a natureza, mais complexo, menos pop, menos convencional. De qualquer modo, convencional é uma palavra que nunca se aproxima de Tetê, nem se ela quisesse, pois seu timbre é sempre um ponto de cisão para muitos ouvintes, que já desistem de seu trabalho apenas pela distinção de sua voz; porém, é esse tom que dá o caráter tão fundamental ao trabalho da artista, que consegue nos levar por cenários do Pantanal, assim como por outras pontes, numa viagem sonora que envelheceu muito bem, sem soar datada.
https://www.youtube.com/watch?v=RzHkMNXX-lg
O pop florestal encaixa-se perfeitamente em Piraretã por esse olhar intenso de Tetê Espíndola sobre tudo que a cerca, com sua intensidade a cantar “conhecer os desejos da terra e semear a terra”, na clássica e bela “Cio da Terra”. Destacam-se ainda no disco as faixas “Refazenda”, “Cunhataiporã”, “Viver Junto” e “Vida Cigana”, música que se tornaria hit romântico nos anos 90 na voz do grupo de pagode Raça Negra.
‘Tamba-Tajá’ – Fafá de Belém
![](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/04/capa30x30.jpg)
Fafá de Belém já havia emplacado uma faixa na trilha da novela global Gabriela, alguns anos antes, porém, é Tamba-Tajá seu disco de estreia, lançado pela Polydor. O trabalho firma-se sobre gêneros regionais, trazendo um caráter distinto daquilo que a levaria às paradas na década seguinte. Passeando por ritmos como o carimbó, o forró e o samba, a artista visita faixas de compositores como Caetano Veloso, Luiz Gonzaga, Nelson Ângelo e Mário Lago, além disso, há três curiosas regravações de faixas do grupo Almôndegas, precursores do rock gaúcho.
Esqueçam as interpretações intensas e rasgadas de Fafá, aqui temos uma jovem cantora, mais delicada, que brinca com sua sensualidade brejeira em canções que são pequenas pérolas escondidas em um disco de capa e título que remetem à cultura indígena nortista. A singeleza de sua interpretação em “Pode entrar”, por exemplo, é sinal de suas escolhas estéticas, que remetem ao disco Cantar, de Gal Costa, porém, numa versão mais interiorana, que brinca com os gêneros mais populares, mesclando de forma sábia a cultura popular brasileira com o que havia de mais moderno na produção musical da época.
Tamba-Tajá é classificado como um disco regionalista, porém, é formado por canções de variados estados brasileiros, mostrando mais uma universalidade de suas temáticas regionais, conseguindo ensejar de forma completa o tal termo “pop florestal”. Sempre classificado como um álbum “amazônico”, é curioso como as faixas dos Almôndegas trazem muito da cultura regional do sul do país, como por exemplo em “Gaudêncio Sete Luas”, música que possui inúmeras regravações de cantores regionalistas do Rio Grande do Sul. No final das contas, faixas como “Cá-já”, “Fazenda” (que surge numa aura mística, completamente diferente da versão de Milton Nascimento) e “Siriê” dão o tom de uma Fafá de Belém completamente distinta: ousada, atenta ao seu tempo e de rara beleza. Quem se encantar com este aqui, vale procurar o segundo disco de Fafá, Água (1977), que segue os mesmos caminhos obtusos que, posteriormente, a cantora deixaria de lado.
O recente Pop Florestal como ponte para o nosso passado
O termo pop florestal não tem grandes definições, nem segue parâmetros rígidos, até porque os gêneros existem para que depois os desvirtuemos, portanto, esse texto não busca encaixar e delimitar o trabalho das duas artistas dentro de uma tag. A única intenção aqui era retornar em dois discos distantes geograficamente (um associado ao Pantanal o outro a Amazônia) e percebê-los como concatenadores de uma cultura muito mais nacional, muito mais ampla e universal do que qualquer definição inicial.
O principal disso tudo é fazer com que esses discos sejam ouvidos com atenção e que se perceba que nossas cantoras, para além de divas da MPB e repetidoras-incessantes-de-bossa-nova, também são experimentais, inteligentes e produziram muita música boa que, às vezes, ficam perdidas no passado. É tempo de reouvirmos o nosso Brasil brejeiro com todo o olhar cosmopolita que sempre acreditamos (e até fingimos) ter.