Por João Paulo Pimentel*, especial para a Escotilha
Ninguém está livre de um textão de redes sociais vez ou outra, certo? A questão é que o troço é sério. Muito sério. Então aqui vou eu.
Se quiser ignorar meu texto, fique à vontade. Mas faça um favor a você mesmo e ouça agora Vs., o álbum de 1993 do Pearl Jam, na íntegra. Na íntegra e NO TALO. Vai por mim, é guaraná com catuaba na veia.
Aliás, proponho que se quisermos aumentar pra valer os índices de produtividade do país teremos que distribuir fones de ouvido pros trabalhadores escutarem esse disco. Ininterruptamente.
Deixa eu explicar a origem desse entusiasmo repentino: meu modo shuffle de escolher as músicas do dia — é randômico, mas nem tanto – me levou de volta ao Vs. E já nos segundos iniciais, naqueles em que a banda parece estar afinando os instrumentos antes de tascar “Go” na nossa orelha, fui alvo de uma revelação: “esta é uma das grandes obras da civilização ocidental”, me disse uma voz. Concordei na hora.
Sério mesmo. (Não vou me cansar de dizer que é sério.) O Ten, disco de estreia dos caras, tem valor histórico, deu um pontapé na explosão do grunge, coisa e tal, e reuniu os hits do Pearl Jam que entraram para o CÂNONE do rock. Mas nem de perto foi tão impressionante quanto este belo CONJUNTO DE FAIXAS.
É verdade também que o Vitalogy, que foi lançado um ano depois, viria a ser mais celebrado por causa de suas experimentações. Mas, convenhamos, o álbum resvala na ranzinzice e na pura bizarrice. Fazia parte da estratégia de autossabotagem da banda, ok, mas chatice intencional ainda assim é chatice. Mais irritante do que os exotismos de “Bugs” ou “Aye Davanita” era a letra de “Not For You”, uma música muito boa, mas um ataque direto aos FÃS: “Isso não é pra você / Foda-se”. Ok, eles estavam incomodados – e preocupados – com o fato de serem um grupo da modinha, mas XINGAR o fã, mesmo os “hypeiros”, foi de uma arrogância ímpar, daquelas que se espera só das pessoas com menos de 30. Eddie Vedder tinha 29. Ufa.
Voltando ao Vs., agora me digam com franqueza: que disco consegue abrir com cinco faixas do GABARITO de “Go”, “Animal”, “Daughter”, “Glorified G” e “Dissident”? São poucos.
“Go” é uma jam session punk. Em alguns momentos, a música parece que vai desmontar, mas segue raivosa, tensa e desconjuntada por 3 minutos. O Pearl Jam só pode ter escolhido “Go” e “Animal” para abrir do disco com o propósito de dizer “Galera, não somos mais a banda de ‘Even Flow’ e ‘Jeremy’; somos isto aqui agora”.
“Animal” é o que mais se aproxima de uma faixa-título – o clima é de “nós contra eles”, de antagonismo, de VERSUS. O resmungo que acompanha os acordes inciais (“Um, dois, três, quatro, cinco contra um, cinco, cinco, contra um”) quase inspirou o nome do disco, que inicialmente iria se chamar “Five Against One”. A gravadora não curtiu a referência ONANÍSTICA. A piazada da banda retrucou “Beleza, vai se chamar Vs., mas tirem o nosso nome e o nome do disco da capa”. Foi assim que as lojas receberam discos e mais discos estampados com aquela ovelha enfiando o focinho na cerca, e só um adesivinho indicando autor e título. Marrentos.
Voltando ao Vs., agora me digam com franqueza: que disco consegue abrir com cinco faixas do GABARITO de “Go”, “Animal”, “Daughter”, “Glorified G” e “Dissident”? São poucos.
Como lembrou o meu amigo Ricardo, “Animal” também era o único sinal do Vs. que podíamos conferir na MTV. Com a decisão da banda de não gravar videoclipes, o canal rodava incansavelmente uma apresentação da música que e o Pearl Jam fez num VMA. Só quem testemunhou o poder da EMETEVÊ na roda da indústria musical dos anos 1980 e 1990 pode captar o significado de ficar INTENCIONALMENTE fora da sua programação.
“Daughter” também era diferente do Pearl Jam original, mas com o sinal trocado: semi-acústica, infelizmente deu origem a uma legião de imitadores ruins e a uma espécie de grunge light que prenunciava o fim da moda de Seattle. Fazer o quê? A intenção, junto com a música, foi boa.
O quarto petardo retoma a agressividade das duas primeiras. Agressividade DO BEM e com militância PROGRESSISTA, ressalte-se, afinal estamos falando do Pearl Jam, a banda do sistemão mais antissistema que já existiu. No caso, a mensagem é o controle de armas. “Tenho uma arma / Na verdade, tenho duas / Tá tudo certo, cara, porque eu acredito em Deus”, grita o Vedder.
E aí vem a música que mais lembra a banda do primeiro álbum, o rockão de arena “Dissident”, com solos hendrixianos tocados pelo Mike McCready e uma levada mais arrastada.
“W.M.A.” usa loop de bateria pra denunciar a violência policial, especialmente contra a população negra. “Blood” conta com um URRO gutural – nessa época, Vedder seria digno em uma boa banda de death metal – misturado a pedais wah-wah pra reclamar da MÍDIA “criadora dos meus inimigos” (alguém aí ouviu Kurt?) Ah, essa mídia. Urubus.
“Rearviewmirror” é a obra-prima aqui. Três guitarras, um riff matador do Stone Gossard, tensão crescente e catarse no momento em que o personagem da letra decide deixar para trás o pai agressor.
A funkeada “Rats” só pode ter sido influência da turnê com o Red Hot Chili Peppers, com o baixão do Jeff Ament mandando no pedaço e direito a uma citação de Michael Jackson no fade-out – “Ben, the two of us need look no more”. Momento trívia: Jack Irons, que viria a ser o batera do Pearl Jam mais adiante, já tinha sido o dono das baquetas dos Peppers nos anos 80.
Segue a toada com “Elderly Woman Behind the Counter in a Small Town”, mais uma acústica, em que o Vedder convence no papel de UMA SENHORA que reencontra uma antiga paixão. Fica meio brega de explicar, mas a tal mulher narradora da canção trabalha por décadas numa lojinha da cidade pequena e se emociona ao rever o amor da vida dela. O duro, mais uma vez, foi ter de aturar uma turma sem talento surfando na ONDA GRUNGE DE AUTOAJUDA E COM CORAÇÕEZINHOS. Argh!
Um parêntese, de novo: o Pearl Jam foi culpado disso desde o início. BOBALHÕES como Creed, Nickelback e afins construíram TODA UMA CARREIRA a partir de “Black” e “Alive”, dois clássicos do Ten. Perdoemo-los. Os The Beatles também deram origem aos Monkees.
Vs. encerra com “Leash” e suas viradas zeppelinianas, e a tristonha, indescritivelmente bonita e resignada “Indifference” – “Vou acender um fósforo nesta manhã para não ficar sozinho”, “Vou tomar veneno até ficar imune”, “Vou olhar pro sol até ficar cego”, “Vou segurar a vela até queimar o braço”, “Vou berrar meus pulmões pra fora até eles preencherem este quarto”, “Vou levar porrada até eles se cansarem”, “Que diferença isso faz?”
Antes de eu finalizar, uma curiosidade MERCADEJANTE. Vs. vendeu 1 milhão de cópias na semana de seu lançamento, um recorde que segurou por sete anos, foi perdido pro ‘N Sync e que hoje é da Adele. É, minhas crianças, houve um tempo em que rock era também coisa das massas, do povão, e não esse produto de nicho atual.
Quando comprei o CD, lá nos idos de 1994, o lado de cima do disco era alaranjadão. Lembro disso pra dizer que no Vs. tudo funciona como num relógio suíço. Ou como no escrete holandês de 74 e 78, uma LARANJA MECÂNICA. Só Cruyff e Kubrick pra se igualarem.
Um POST SCRIPTUM, se me permitem: com todo o respeito ao Matt Cameron, esse Dave Abbruzzese foi o melhor baterista em estúdio do Pearl Jam. Que fim levou o sujeito?
* João Paulo Pimentel é jornalista formado pela PUCPR. Foi editor de Economia e do Caderno G da Gazeta do Povo.
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