Uns anos atrás, uns bons tantos que a memória chega a falhar, uma dupla lançou um disco que me marcou. Àquela época, eu nem tinha pretensões de morar em Curitiba, e confesso que não sei como tropecei naquelas 14 canções.
Como tive oportunidade de ver inúmeros grupos de hip hop nascendo em São Paulo, me agradava particularmente ver como havia um resgate de sons dos anos 60 e 70, algo próximo do que a Era de Ouro fez nos anos 80 nos Estados Unidos. Isso acontecia em A Verdade Dói, da 14Beats, que carregava um peso lírico com uma melodia mais orquestrada, semelhante ao que eu ouvia nos grupos paulistanos, mas diferente, e não apenas pelo sotaque.
O tempo passa, e por sorte esbarrei no trabalho do Fantoxi, um dos responsáveis por aquele A Verdade Dói que ficou gravado em minha cabeça. Confesso que eu tinha certo receio do que poderia escutar, já tinha tempo que não o ouvia. Para minha sorte (e um forte tapa na minha desconfiança), Sem Limites é um trabalho potente, cru, resgatando um rap que sabe dosar conteúdo e forma, que ousa ao inserir trechos de Raul Seixas e toca em pontos nevrálgicos dentro do movimento hip hop, ainda sectarista, machista e homofóbico – mas é importante frisar que isso vem mudando no seio do movimento ao longo dos últimos anos.
“Eu sei que determinada rua que eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos”, diz Raul Seixas em “Canto Para a Minha Morte”, do disco Há 10 Mil Anos Atrás. É necessário ouvir as 12 faixas de Sem Limites para compreender a importância da inclusão no contexto da obra. Fantoxi pega o microfone e, muito mais do que “dar a real”, o rapper destila pequenas doses homeopáticas de verdades, aquelas que ficam distante do bater de panelas de quem acabou de descobrir o caminho da cozinha – ou o lugar onde sua empregada, a que ele reclama por conta da PEC nº 72, guardou os utensílios domésticos.
Fantoxi pega o microfone e, muito mais do que ‘dar a real’, o rapper destila pequenas doses homeopáticas de verdades.
Mesclando batidas insinuantes e rimas rasteiras, Fantoxi vai do rock, ao soul, incluindo experimentações do house, que puxam a sonoridade para o trip hop britânico. Isso deixa duas coisas claras: primeiro, que Fantoxi não tem medo de ousar; segundo, que há de sermos muito tapados e limitados musicalmente para não entendermos que os beats ultrapassaram os limites do gênero. Somos, afinal, todos periféricos. A diferença é que uns sentem na pele, enquanto outros ainda caminham com o opressor, mesmo que metaforicamente falando.
Chega a ser injusto com um disco tão coeso, em que há uma história da primeira à última canção, uma força real e latente, escolher uma canção como destaque. Mas, se obrigado fosse, diria que “É por Elas”, a segunda das duas participações de Gi Bertolini, é uma música poderosa, tanto pela temática quanto por sua batida.
Em “Vida é Desafio”, canção dos Racionais MCs, Afro X (ex-509-E) diz: “Sempre fui sonhador, e é isso que me mantém vivo.” Fantoxi, continue nos fazendo não deixar de sonhar que a música pode fazer uma sociedade melhor. Garanto, isso faz com que mantenhamo-nos vivos.