Recife e Pernambuco parecem fontes inesgotáveis de criatividade musical. Não é necessário fazer grandes esforços para imaginar artistas vindos de lá que marcaram época na história da música brasileira. Ano após ano, a cena local parece se reinventar, às vezes encontrando em si mesma a energia catalisadora desses renascimentos (e ressignificações).
Miocárdio, primeiro disco solo do músico Barro, não é apenas mais um desses exemplos, mas um grande marco dessa nova cena que estabelece pontes e diálogos culturais, e não somente revisitando a própria história musical pernambucana.
Sem prender-se em gêneros, Barro provoca nossos tímpanos com uma sensual miscigenação sonora. “Eu acho que essa diversidade é uma característica muito forte da música brasileira”, comenta o cantor e compositor em entrevista exclusiva (confira os melhores momentos ao final do texto), concedida durante sua passagem por São Paulo, onde se apresentou no Sesc Vila Mariana e no Z Carniceria.
Barro trouxe em Miocárdio uma biblioteca de músicas que exalam a criatividade e sensibilidade do músico pernambucano, suas interações com a geografia de Recife, do Brasil e do mundo. “Meu disco fala muito disso, das relações afetivas, sejam elas de casal, de pai, de irmão, de amigo, seja ela humanitária, e os afetos de uma forma complexa, como eles interferem, e até o lado negativo e perverso do afeto”.
E o cantor faz questão de afirmar que ainda há muito mais a ser feito. “Esse eu acho que é meu grande desafio, que me dedico a fazer com afinco: dar algo bom às pessoas, que seja o melhor que eu possa dar naquele momento”, completa.
Barro, que já possui 15 anos de carreira e passou por alguns grupos do Recife, entre eles a banda Dessinée (da qual ainda é integrante), faz parte dessa nova geração que encontrou nessa forma mais agregadora e plural de fazer música a essência perfeita de nossa brasilidade. “Isso tem muito a ver com a própria formação da nossa identidade mesmo. É uma coisa muito forte, desta ideia da antropofagia, do modernismo, que influenciou a tropicália, influenciou o manguebeat, e está no DNA de toda a música brasileira”.
Entre a geração manguebeat e a de Barro, vivemos uma grande revolução na indústria da música a partir do surgimento e fortalecimento da internet, não apenas como polo difusor de ideias, mas também de arquivos, artistas, cenas.
Para o músico, esse momento de transição não representou apenas facilidades aos artistas. “É muito difícil, porque, de certa maneira, exige dos músicos e das bandas que elas se tornem núcleos bem complexos, que envolvam a produção, gravação, parte técnica, comercial, marketing… É um trabalho bem complexo, que exige muita competência do músico que às vezes só sabe compor e tocar”, aponta.
E nesta nova realidade, as cenas locais passam a ganhar representatividade e importância, ainda que Rio de Janeiro e São Paulo sejam o coração artístico-cultural do país. “No eixo Rio-SP nós temos uma maior concentração de tudo, de oportunidade de veículos, sobretudo em São Paulo. Tem uma coisa muito sintomática, né. Conversando com o artista Totonho, da Paraíba, ele falou uma coisa muito interessante: ‘Cara, até a Banda de Pífanos de Caruaru mora em São Paulo’”, conta Barro, que também faz questão de apontar a força dessa atual cena pernambucana.
“Pernambuco tem um lastro muito forte, mas desde o manguebeat vem sempre renovando e trazendo novos nomes para a música brasileira. Isso gera um ambiente muito produtivo, porque consolidou-se a ideia que é possível fazer uma música saindo de lá e rodar o mundo, rodar o Brasil tocando e preservando sua identidade. E hoje a gente vive um momento de colaboração forte dentro dessa cena”.
Sobre seus conterrâneos (e contemporâneos), Barro afirma ser difícil (e injusto) tentar descrever um panorama do que se passa na música do Recife e de Pernambuco. “Quando falamos de música pernambucana termina que a gente se atém muito ao litoral, a essa música pop, enfim. Tem uma diversidade grande de manifestações, de mestres, de várias vertentes culturais: ciranda, maracatu, cavalo marinho, coco e suas diferentes variações, forró, emboladores, enfim. Uma complexidade grande”.
Mas além dos músicos que surgiram com o manguebeat e mantêm-se na ativa, Barro cita nomes que vêm despontando localmente como Marsa, Igor de Carvalho, Juliano Holanda, Zé Manoel, Isadora Melo e Sofia Freire, sem esquecer de nomes que já invadiram o Brasil como Johnny Hooker, Tagore e Felipe S.
Neste interessante caleidoscópio musical que é a música pernambucana, emerge a diversidade, riqueza e pluralidade da música sendo feita por lá. “A coisa mais importante, talvez, da cena de lá é o fato dela conseguir não plastificar sua música”, analisa Barro, que também apontar como força ser “uma cena que está sempre expandindo e trazendo novos nomes”. A circulação e o movimento de artistas e grupos “são bem intensos”. Palavras do próprio Barro.
Melhores momentos da entrevista com Barro
“Eu acho que a gente vive um momento bem particular de consolidação dessa queda do modelo de gravadora homogêneo e único, que teve até os anos 90, e o crescimento ao mesmo tempo das plataformas digitais como alternativa para formação de público e ampliação disso.”
“Precisa realmente rodar o Brasil, vir para São Paulo para dar maior visibilidade ao trabalho. Mas criativamente, a produção continua muito forte. Tem vários nomes vindo dessa cena, desde Johnny Hooker, destacaria também a banda Marsa, Juvenil Silva e tantos outros que vêm mostrando essa contínua produção de novos nomes surgindo em Pernambuco.”
“Os gêneros estabelecidos e rígidos tendem a se dissolver. O hip-hop, enfim, o próprio rock de hoje virou um pop eletrônico. Radiohead não pode ser concebida como uma banda de rock, ou de pop rock. Realmente eles transcendem as possibilidades.”
“Eu gostaria muito de não necessariamente ter que mudar, mas cada vez eu preciso estar cada vez mais em São Paulo para que o trabalho possa caminhar e se desenvolver. Mas na verdade, eu acho que o artista precisa estar sempre circulando.”
“Então, cada vez que a gente circula nós temos a chance de conectar mais pessoas com ela e abrir novas conexões que poderiam ser inesperadas a priori, mas que se revelam muito fortes e sólidas quando isso acontece ao vivo, essa interação com as pessoas.”
“Hoje é realmente muito difícil viver de arte, do ponto de vista autoral. Eu sempre quis trabalhar minha música com autoralidade. Sempre fugi desta ideia de tocar por tocar, ou ser um músico acompanhante, ou não criar a composição. Para mim, gerir tudo desde o começo é uma coisa fundamental para minha satisfação pessoal. E isso é uma estrada árdua.”
“A música para mim é um elo importantíssimo. Virou uma escolha de vida, a coisa que realmente me move como ser humano, me faz acordar, me dá estímulo e me dá alegria de viver. Eu tenho uma relação bem forte, existencial mesmo, com meu ofício.”
“Eu sempre achei que a música é um passaporte para lidar com outras culturas, desenvolver diálogos e mostrar que o mundo, apesar das fronteiras, é uma coisa só. Até pouco tempo, várias coisas que a gente considera países e territórios eram zonas abertas de tráfego. Mostrar essa relação e entender os fluxos das músicas e dos sons e como isso se conecta; as semelhanças existentes, as diferenças, a riqueza da diversidade, a beleza dessas semelhanças, são importantes para mim.”
“Cinema mexe muito, artes visuais, aquilo que eu leio, mas sobretudo essas experiências, o que eu ouço e vejo, e as emoções que também vêm em mim. Essas são as grandes válvulas de escape.”
“Quando falamos de música pernambucana termina que a gente se atém muito ao litoral, a essa música pop, enfim. Tem uma diversidade grande de manifestações, de mestres, de várias vertentes culturais: ciranda, maracutu, cavalo marinho, coco e suas diferentes variações, forró, emboladores, enfim. Uma complexidade grande.”
NO RADAR | Barro
Onde: Recife, Pernambuco.
Quando: 2016.
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