A história da música (e da cultura de maneira geral) guarda alguns grupos e/ou artistas que caíram nas graças do público, ganharam fãs, compuseram hinos, receberam ares de bandas/artistas cult e, ainda assim, não tiveram muitos de seus sucessos registrados em álbuns, filmagens e mesmo fotos.
Certamente, isso era um fenômeno mais comum antigamente, quando máquinas eram escassas e smartphones não eram nem perto de ser realidade. Entretanto, volta e meia aparece um grupo que resgata essa coisa um tanto nostálgica de reservar sua mágica artística para os palcos. Um dos grandes exemplos latino-americanos vem de Lima, capital do Peru. O quarteto Eva & John vem ganhando cada vez mais espaço fazendo seu noise com elementos de surf rock e shoegaze, acrescentando ares de banda cult ao seu currículo ao ver suas canções tornarem-se verdadeiros hinos.
São apenas dois EPs gravados, César Gutiérrez Flexi Single e Los Días, o mais recente, que somados chegam a marca de apenas cinco canções registradas. “Não planejamos gravar um disco completo no momento”, me contam os músicos peruanos. “Quem sabe no futuro lancemos um LP com 8 ou 10 músicas novas”, completam.
De um jogo de palavras chegaram ao nome da banda, uma versão peruana e musical para uma espécie de Bonnie & Clyde. No caso da Eva & John, Eva faz menção à cantora de música criolla Eva Ayllón, indicada quatro vezes ao Grammy Latino de melhor álbum folclórico, uma grande amiga e companheira de palco da argentina Mercedes Sosa.
A combinação de distorções e suavidade do grupo reflete muito bem uma nova geração de fãs e artistas que agregam romantismo, euforia, amor e fúria. Os 6 anos de Eva & John também foram marcados por algumas mudanças, em especial na formação do grupo. Hoje, Daniel, Manuel, Carlos e Muriel dão prosseguimento ao sonho de José, ex-baixista do grupo e responsável por juntar os músicos que deram cara à primeira formação da banda.
A combinação de distorções e suavidade do grupo reflete muito bem uma nova geração de fãs e artistas que agregam romantismo, euforia, amor e fúria.
Mas nem mesmo essa idolatria em cima do grupo foi capaz de permitir que vivessem apenas de música. “A música é um complemento ao que somos e fazemos. Tocamos pouco ao vivo, e algumas vezes nós mesmos organizamos os eventos com bandas amigas”.
E desses eventos o grupo tira o dinheiro para cobrir gastos com ensaios, transporte e consumo, além de pagar pela participação dos demais grupos. “Não reclamamos sobre a falta de apoio. Aqui é assim, os bares e casas de shows preferem ter suas sextas e sábados com música dançante ou bandas que tocam covers, porque o público comparece e eles ganham dinheiro, afinal é o seu negócio”, complementam.
Aos leitores que acompanham esta coluna, fica visível o quanto os problemas para grupos independentes nos países vizinhos são semelhantes aos nossos. Falta de espaço nos veículos de imprensa (ao menos nos hegemônicos), pouco público, sem lugares e/ou festas para se apresentar, etc. “Ainda existe muito pouca divulgação das bandas locais nos meios de comunicação como rádio e TV. Mas isso vai crescer à medida que os jovens passem a se interessar pela nova música que se faz por aqui”, afirmam os integrantes.
‘LOS DÍAS’, CANDIDATO A DISCO CULT
É impossível não se encantar pelos riffs ruidosos do grupo e a descarga de ironia em canções como “César Gutiérrez”, presente no single lançado em 2013. Em Los Días, o grupo, mais maduro, apresenta novas camadas referenciais, em especial uma inspiração no surf rock dos anos 60. A própria faixa-título, “Los Días”, é um abraço em referências do grupo, como The Velvet Underground e Jesus & Mary Chain. A distorção e o reverb somados criam uma atmosfera única, uma espécie de paisagem sonora crua.
“Malibu”, faixa que encerra Los Días, é a que melhor nos permite conferir o exímio trabalho feito por Muriel no baixo da Eva & John. Cadenciada e cheia de uma intensidade punk, ela arremata um disco incrível, com todos os ingredientes para tornar-se digno de culto.
A MÚSICA AO SUL DO MUNDO
Luiz Ruffato foi direto ao ponto quando fez o discurso de abertura da Feira de Frankfurt, na Alemanha, em 2013. O Brasil e demais países latinos são vistos como a periferia do mundo, “um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora”.
Ainda assim, seguimos nesta luta de criar, diariamente, sentidos para a vida. “Por nossa experiência, o rock na América Latina tem uma vantagem sobre o que acontece na Europa, Estados Unidos ou Ásia, devido a que na maioria de nossos países a indústria da música foi ou está sendo criada pelas mesmas bandas e não por grandes empresas”, compartilhou o grupo.
E a verdade é que a cena musical peruana tem se convertido em uma das mais férteis na América do Sul. A possibilidade de cruzar referências estrangeiras com locais vem brindando o público com resultados ímpares. “No rock que se faz no Peru, a maioria das bandas tem suas influências marcadas por bandas norte-americanas, britânicas ou espanholas. Claro que existem muitas que são uma cópia terrível dessas influências, mas as que se destacam são as que usam estas influências, se apropriam delas e criam algo diferente com base no ambiente da sua cidade”, completam.
Pergunto se consideram o mercado regional fechado ao que vem de fora, especialmente o cantado em inglês. “Não acreditamos que [o problema] passe pelo idioma. É pelo medo ao novo”, afirmam. E pelo panorama que compartilharam, em alguma medida, os responsáveis pela parte promocional da indústria da música estagnaram, pararam no tempo. “Quando o assunto é rock, a maioria segue tocando temas dos anos 80 e 90”, sentenciam.
ROCK NO PERU
Antes de terminar, peço a indicação de artistas que devemos conhecer. Para nossa sorte, Daniel, Manuel, Carlos e Muriel nos oferecem um mergulho em mais de 50 anos de rock peruano. “Se não conhece muito do rock feito no Peru, deve escutar Los Saicos, Los York’s, Los Shain’s e Los Belking’s, dos anos 60; dos anos 80, o punk e o post-punk de Voz Propia, Leuzemia e Narcosis; dos 90, a banda mais emblemática para nós foi a Silvania, que em 2001 formaram a Cielo en España”.
Já de bandas mais contemporâneas, as sugestões são Serto Mercurio, Juan Gris, Mundaka, Gomas, Dan Dan Dero, Amadeo Gonzales, Fútbol en la Escuelo e Orquídea, esta última a única de fora de Lima, residindo em Arequipa.
Sobre seus planos de futuro, realmente ainda levaremos um tempo até ouvirmos um disco completo da Eva & John. “Seguiremos tocando ao vivo, gravando algumas faixas e vamos tentar tocar fora do Peru”, dizem. E eu espero ansiosamente que nosso próximo encontro seja em terras brasileiras.
NO RADAR | Eva & John
Onde: Lima, Peru.
Quando: 2010
Contatos: Facebook | Bandcamp
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.