Uma noite para não esquecer. Em 29 de setembro de 1968, “Sabiá”, composição de Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, foi apresentada no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, durante o 3º Festival Internacional da Canção, e recebeu vaias quase unânimes, que se tornaram ainda mais veementes quando a música foi anunciada como a melhor do certame, segundo o júri.
O público que lotava o estádio preferia, e cantava em uníssono, “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (também conhecida como “Caminhando e Cantando”), de Geraldo Vandré, uma canção de protesto que criticava de forma explícita o estado de coisas no país e conclamava o povo a reagir aos desmandos do regime militar: “Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.
“Sabiá”, cuja letra é mais sutil e metafórica, foi considerada, em um primeiro momento, “desvinculada da realidade”, alienada em relação ao que estava ocorrendo no país. Logo, no entanto, a criação de Tom e Chico, interpretada pela dupla Cynara e Cybele (que formariam o Quarteto em Cy), seria percebida de outra forma: como uma premonitória canção do exílio, em referência ao poema de Gonçalves Dias (1823-1864). Sua primeira estrofe diz: “Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/ Para o meu lugar/ Foi lá e é ainda lá/ Que eu hei de ouvir cantar/ Uma sabiá”.
Para o musicólogo Ricardo Cravo Albin, de 69 anos, um dos maiores pesquisadores da história da música popular brasileira, foi no período da ditadura militar que a canção nacional mais se ocupou de falar a respeito de assuntos referentes à política, mantendo um constante embate com a censura. “Solange Hernandes, diretora do Departamento de Censura Federal, nessa época se tornou uma das figuras mais temidas e combatidas do país”, conta a jornalista Regina Echeverria, autora das biografias Furacão Elis e Gonzaguinha e Gonzagão: uma História Brasileira.
O historiador Gustavo Alonso, autor de Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, sobre o cantor Wilson Simonal, acrescenta que não era apenas a chamada MPB que se ocupava de discutir a sociedade, o panorama político. Ele diz que gêneros musicais populares, como o sertanejo e o brega, também fizeram isso, lembrando de Odair José e de sua ousadia em músicas como “Pare de Tomar a Pílula” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”.
Para o musicólogo Ricardo Cravo Albin, de 69 anos, um dos maiores pesquisadores da história da música popular brasileira, foi no período da ditadura militar que a canção nacional mais se ocupou de falar a respeito de assuntos referentes à política, mantendo um constante embate com a censura.
Em entrevista, Cravo Albin ressaltou que, embora o auge da canção política tenha sido durante a ditadura, a música popular brasileira sempre refletiu de alguma forma o que estava acontecendo no país desde Sinhô (1888-1930), nome artístico do compositor José Barbosa da Silva, um dos precursores do samba. Seu gosto pela sátira lhe ocasionou problemas quando compôs, por exemplo, “Fala Baixo”, em 1921, satirizando a figura do presidente Artur Bernardes.
Autor de inúmeras obras sobre música brasileira, entre elas o livro Driblando a Censura (Editora Gryphus), o pesquisador lembra Aviso aos Nevegantes, LP em dez polegadas lançado em 1956 pelo compositor Alberto Ribeiro (1902-1971), parceiro constante de João de Barro (o Braguinha), em que interpretou 16 músicas de sua autoria, todas de cunho social.
Cravo Albin ressalta, ainda, “Retrato do Velho”, marcha carnavalesca de Haroldo Lobo e Marino Pinto, gravada por Francisco Alves. A música, que embalou o retorno de Getúlio Vargas ao poder em 1950, diz em sua letra: “Bota o retrato do velho outra vez/ Bota no mesmo lugar/ O sorriso do velhinho/ Faz a gente trabalhar”.
“Poética do eu”
Luiz Gonzaga Jr., o Gonzaguinha, iniciou sua carreira como compositor, escrevendo muitas canções engajadas, de protesto contra o governo militar. Segundo sua biógrafa, Regina Echeverria, cujo livro foi uma das fontes para o filme Gonzaga – De Pai para Filho, a canção “O Trem”, foi apresentada por Gozaguinha em 1969, no 2º Festival Universitário da Música Brasileira, no mesmo dia em que o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, foi sequestrado, também no Rio, por integrantes das organizações de extrema-esquerda Dissidência Comunista da Guanabara – MR-8, episódio narrado por Fernando Gabeira seu livro autobiográfico O Que É Isso, Companheiro?.
“Era uma canção pesada, difícil de digerir. O Gonzaguinha só foi fazer sucesso de verdade, em 1979, quando suas canções de amor [como “Explode Coração” e “Grito de Alerta”, gravadas por Maria Bethânia] aconteceram. Foi justamente o ano da Abertura, em que os exilados políticos foram anistiados e começaram a retornar ao país”.
A introspecção e o romantismo que consagraram Gonzaguinha no fim da década de 1970 de certa forma anunciavam um distanciamento gradual, porém determinado, da música brasileira de temas mais engajados, políticos. “Com o fim da censura e a democratização do país, passou a fazer cada vez menos sentido falar dessas coisas”, diz Regina.
Para Cravo Albin, “a música brasileira hoje tem a marca da individualidade, e da busca pela poética do eu”. Os compositores estão mais voltados para temas existenciais, profundamente pessoais e até filosóficos. O pesquisador exemplifica sua tese, citando Chico Buarque, combativo autor de canções de alto teor político, como “Apesar de Você” e “Acorda Amor” (sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide), que, aos 68 anos, se afastou um tanto do engajamento em suas criações musicais. “Em Chico (2011), por exemplo, ele canta sobre envelhecer, morar sozinho, o amor na idade madura. Nem menciona temas políticos.”
Gustavo Alonso faz uma ressalva: do álbum de Chico, ele cita a canção “Sinhá”, que, segundo ele, tem um sutil viés de crítica social, ao falar das relações entre um escravo e sua senhora: “Se a dona se banhou/ Eu não estava lá/ Por Deus Nosso Senhor/ Eu não olhei Sinhá/ Estava lá na roça/ Sou de olhar ninguém/ Não tenho mais cobiça/ Nem enxergo bem”. Hoje, apontam os entrevistados, o comentário sobre questões sociais e, portanto, políticas, está mais presente nos trabalhos de rappers – entre eles, MV Bill, Emicida e o grupo Racionais MC’s – e funkeiros, que trazem nas suas letras a angústia e a indignação de quem sabe do que está falando.
Reportagem publicada pelo autor originalmente em 30 de novembro de 2012 na Gazeta do Povo.
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