Emicida é um dos mais prolíficos artistas brasileiros. Apesar de estar apenas em seu segundo álbum de estúdio, o músico tem outros dois EPs, duas mixtapes, um disco ao vivo – junto com o também rapper Criolo – fora inúmeros singles.
É comum que nos perguntemos o que um músico mudou entre um trabalho e outro, mas, talvez, a pergunta mais acertada aqui seja: o que mudou no país de O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, de 2013, para Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, lançado no último dia 07 de agosto?. Não há dúvidas que de lá para cá Emicida é um artista mais maduro. Também não há dúvidas de que o Brasil não é mais o mesmo.
Teria isto motivado suas viagens à Africa? Pode ser que sim, pode ser que não. A verdade é que Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa faz – de maneira até certo ponto fenomenal – um recorte sobre o Brasil contemporâneo.
Houve a preocupação muito maior que problematizar o abismo entre brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres, mas também incitar que saiam de suas posições de vítimas e tomem as rédeas da mudança nos rumos de suas próprias vidas.
Não sabíamos até então, mas Criolo & Emicida Ao Vivo tornou os artistas em questão o novo casal 20 da música nacional. Não existe em nosso país outro gênero musical tão representativo da realidade da maioria do nosso povo como o rap. E este registro de 2013 da dupla Criolo e Emicida criou um diálogo que seria continuado nos dois anos seguintes.
Se Convoque Seu Buda (Criolo, 2014) era o prenúncio de um racha político e social, o novo trabalho de Emicida é a confirmação de que, queiramos ou não, somos um país partido ao meio. Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa é, acima de tudo, um disco necessário por colocar o dedo em algumas feridas abertas há tantos séculos em nosso país.
Através de metáforas e outros recursos estilísticos, o rapper vai do carinho de quem deseja pássaros entre nós (faixa “Passarinhos”, que divide os vocais com a doce Vanessa Da Mata) e que compartilha sua “Mãe”, às batidas carregadas de riffs e grooves de “Boa Esperança” (uma continuação não proposital de “99 Problems” de Jay Z).
Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa é, acima de tudo, um disco necessário por colocar o dedo em algumas feridas abertas há tantos séculos em nosso país.
O filósofo suíço Jean Jacques Rousseau pressupunha a existência de uma única virtude natural humana, que regularia nosso instinto de sobrevivência – a piedade. Acerca desta virtude, Rousseau aponta que a piedade toma maiores proporções quanto maior for a identificação com o indivíduo sofredor.
Oras, talvez seja, então, o exercício da empatia a maior virtude do trabalho de Emicida. Precisamos nos colocar no lugar dos personagens de suas músicas, de forma a compreender nossa própria realidade – afinal, o outro é parte de você em uma vida em sociedade.
Podemos, de forma inocente, crer que Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa não foi feito pensando em nós, que não somos um dos personagens que não se sentem chocados ao assistir ao “silêncio e cara no chão”. Pois bem, talvez sejamos justamente nós, os Macunaímas neste país da simpatia (leia crônica aqui), como disse o jornalista Paulo Camargo, os vilões deste pesadelo.
O novo CD de Emicida caberia bem em um manifesto, que nos fizesse reconhecer que há uma desigualdade social, racial, de gênero e tantas outras, que são produtos da nossa sociedade, e que esta realidade social só pode ser combatida e transformada a partir do momento em que deixemos de aceitar isso como um fato consumado.
O disco, como dito na análise de Lucas Scaliza (leia aqui), apresenta suas derrapadas, suas imperfeições, mas que nada tiram o mérito do rapper, que entrega um trabalho preciso, afiado e, por que não, angustiante. Raio X Brasil (1993), dos Racionais MCs, foi um marco na história do rap nacional. Ousaria dizer que Emicida deu continuidade a esta obra.