É engraçado como o mundo da música às vezes nos dá umas sínteses do momento que vivemos. Música não deixa de ser um retrato dos tempos e isso, por vezes, fica claro fora dos palcos também. Fala-se muito do ódio destilado a cada segundo nas redes sociais, seja em postagens sobre política, esportes, celebridades, ou até mesmo no vídeo de algum gato sendo fofo. Comentários preconceituosos e irritados fazem parte da internet e normalmente não causam reações eficazes, mas um caso chamou a atenção recentemente.
Na semana passada, a banda de rock/shoegaze norte-americana Whirr usou o Twitter para rir e xingar da banda feminista e ativista trans G.L.O.S.S. (sigla para Girls Living Outside Society’s Shit). Entre os comentários, xingamentos aos que criticavam a postura da banda e citações dizendo que transsexuais deviam se matar. No dia seguinte, o Whirr amanheceu sem uma gravadora, expulsos do selo Run For Cover, um dos mais importantes da cena alternativa nos Estados Unidos atualmente.
Para quem conhece o Whirr, a situação nem chamou a atenção. Formada em 2010, a banda tem uma merecida fama de ser, na falta de outras palavras, estúpida, até mesmo com os fãs. Numa passagem rápida pelo Facebook oficial do grupo de San Francisco, encontramos rapidamente comentários da banda xingando os fãs e fazendo comentários preconceituosos do nível de adolescentes querendo aparecer. Tirando uma confusão com a revista Pitchfork após o crítico Ian Cohen não elogiar muito o disco mais recente do Nothing, projeto paralelo do guitarrista do Whirr, Nick Bassett, a banda não havia sentido ainda que falar demais na internet pode ser um problema. Logo após o comunicado da Run For Cover se pronunciando sobre os tweets transfóbicos, a banda soltou uma nota explicando que um amigo havia entrado na conta do Twitter e feito as postagens. Com o histórico nada favorável do grupo, o pedido de desculpas foi questionável.
Com o histórico nada favorável do grupo, o pedido de desculpas foi questionável.
Estamos falando de bandas de rock e ninguém pede que sejam politicamente corretos, especialmente na cena punk, mas há uma linha tênue que divide a liberdade de expressão com a ofensa – e a segunda pode ter consequências. A atitude desleixada e preconceituosa do Whirr, em uma época em que nunca se falou tanto sobre direitos LGBT e feminismo, não pode ser (e não ficou) escondida como opiniões impopulares de jovens que querem que o mundo se exploda.
O posicionamento vai contra alguns avanços na cena alternativa, que tem nas bandas punks o principal fôlego de rock ativista. O G.L.O.S.S., citado pelo Whirr, é uma banda que recém lançou seu primeiro EP, com canções explosivas e gritos de raiva que bradam contra uma sociedade conservadora. A banda vem de Olympia, cidade de outra banda ativista feminista mais famosa, o Sleater-Kinney; e na mesma cena punk podemos listar inúmeras bandas que levantam bandeiras políticas, como o Rise Against, e uma que não deve ser esquecida nesse debate envolvendo transfobia: o Against Me!.

Quando vi a situação do Whirr, pensei na hora se fazia sentido a mesma cena ter eles e o Against Me!, banda da Flórida entre as mais relevantes do punk rock na última década. Discípulos do Crass, o coletivo anarco-punk inglês formado no fim dos anos 1970, o Against Me! é liderado por Laura Jane Grace, ex- Thomas James Gabel, transsexual que jogou o assunto no ventilador ao se assumir e lançar em 2014 Transgender Dysphoria Blues, álbum conceitual sobre uma prostituta transgênero.
Após uma década como uma banda punk ativista liderada por um homem, a mudança de Laura e músicas como “True Trans Soul Rebel” foram um chute no conservadorismo e o disco que saiu desse processo foi um dos mais aclamados do ano passado. Como a gravadora Run For Cover disse ao expulsar o Whirr do seu catálogo, bandas como o G.L.O.S.S. são necessárias e importantes no cenário atual, e o Against Me! abriu caminho para muitas delas.
Se estivéssemos falando talvez de outra cena, como pop ou eletrônica, uma declaração como a do Whirr poderia ter tido menos consequências, mas nesse contexto da cena alternativa o discurso político é levado a sério, as bandas têm posicionamento e as opiniões são parte importante da música. Para uma banda mediana de shoegaze como o Whirr, uma vaga num bom selo era a chance de viver da música por um tempo, mas a consequência da liberdade da internet pode ter custado caro para o grupo.