Temperança, do latim temperare, “guardar o equilíbrio”. Qualidade ou virtude de quem é moderado, comedido. Essa palavra nem tão conhecida e de tantas interpretações pode ser definida como fundamental. Essencial para nós, para um novo ano que começa, para um país cada vez mais tomado pelo preconceito e pelo mais puro ódio destilado em inúmeras variedades, e direcionado a qualquer um diferente do outro. O Brasil, como se prova a cada dia, tem virado um país de intolerantes, e é exatamente por mais tolerância que abro 2016 falando sobre um projeto que não deveria passar despercebido, por sua qualidade musical e, especialmente, por sua mensagem.
Lançado pela internet no dia 1º de janeiro, Temperança – Um Manifesto Contra o Ódio é uma seleção de músicas de artistas da cena independente brasileira com um tema em comum: pensar no outro – ou, em palavras mais bonitas, coexistência pacífica. “Afinal, não somos nós o outro de alguém?” questiona a paraense Camila Barbalho na faixa que abre a coletânea. Seja em letras mais politizadas ou em simples gestos cantados de amar mais, dar e receber, respeitar e entender, Temperança faz jus ao significado da palavra ao trazer 13 canções que encaram o ódio com carinho.
O trabalho surgiu de um projeto inicialmente solo de Dary Jr., da antiga Terminal Guadalupe e atual compositor do Dario Julio & Os Franciscanos. No meio do caminho, o músico pensou em reunir outros colegas unidos pelo mesmo sentimento: precisamos ser mais tolerantes. Daí surgiu Temperança, com participações de Marcelo Perdido, Beto Cupertino (do Violins), André Mendes e membros de bandas como Monocine, Ludov e Los Porongas.
São vários os grandes momentos do disco. Em “O Outro”, Camila Barbalho canta sobre entender os problemas dos outros e saber que cada um luta sua batalha diária; em “Rinocerontes”, Diogo Soares canta sobre tragédias atuais, em especial o desastre ambiental em Mariana (MG); em “Mais do Mesmo”, Beto Cupertino traz toda a poesia do Violins em uma música sobre redenção e fugir da mesmice, e em “Caixa Forte”, Marcelo Perdido recria a estética de seu disco Inverno ao falar sobre tentar se esconder em meio aos problemas de São Paulo: escolas fechadas, falta de água, preconceito e racismo, mas tudo com uma ponta de esperança no fim das contas.
Nesse Brasil movido ao ódio, coexistir é cada vez mais difícil e ser mais tolerante é o passo inicial e fundamental. Exatamente para combater esse ódio, Temperança não é político com raiva, é político com amor.
É daí que vem uma força de Temperança. É um disco que fala de problemas sociais e políticos, mas com amor e sem perder a esperança de que, com mais compaixão e temperança, as coisas podem melhorar a partir de nós mesmos. A música sempre foi um instrumento político. O punk prova isso, a música brasileira provou isso nos tempos de ditadura, o jazz provou isso nos Estados Unidos e, em um momento tão delicado e revoltante como o que o Brasil vive nos últimos anos, falta em terras tupiniquins a música como vanguarda social.
Temperança é o trabalho mais atual e preciso sobre como o Brasil começa 2016. Um país onde o outro é uma ameaça, que recria a escravidão ao amarrar negros em postes e linchar, que assassina um haitiano no litoral catarinense e que no dia 30 de dezembro corta a garganta de uma criança indígena de dois anos de idade. Nesse Brasil movido ao ódio, coexistir é cada vez mais difícil e ser mais tolerante é o passo inicial e fundamental. Exatamente para combater esse ódio, Temperança não é político com raiva, é político com amor. Em meio a tantos gritos e pedras, o disco é uma conversa delicada. Uma revolta sutil dentro de cada um que se sente exausto de tanta intolerância.
Temperança está disponível para download no Scream & Yell. Conheça aqui e escute na íntegra abaixo.