Existe na Bíblia a parábola dos dois caminhos, na qual fica estabelecido que não há uma terceira via (ou três tipos de pessoas). “Vês aqui, hoje te tenho proposto a vida e o bem, e a morte e o mal”, está escrito em Deuteronômio. Mas que o leitor não se assuste. Não trago aqui este trecho com desejos de debater religião ou fé. Longe disso.
Há uma certa relação no Brasil que, de várias formas, justificam a existência de colunas como a “Prata da Casa” e esta, a “Radar”. Enquanto uma se propõe a esmiuçar Curitiba e o Paraná, a outra é um mergulho, ainda que involuntário (a “Radar” não tem por objetivo olhar apenas nosso país), nos rincões do Brasil que o próprio Brasil desconhece.
O eixo Rio-São Paulo ainda exerce peso desproporcional na cadeia produtiva da música – e de várias outras vertentes culturais. Causa estranheza quando verificamos que quase todas as listas dos últimos anos de melhores trabalhos nacionais são recheadas de artistas que não estão no caminho da Via Dutra ou da Rio-Santos.
Invariavelmente, há uma chama que atrai grupos dispostos a largar o conforto de seus lares e mergulharem no universo particular que são Rio de Janeiro e São Paulo.
Convenhamos, ambas as cidades não comportam todos os ótimos artistas que se espalham no país, e isso me leva a ser um defensor do fortalecimento do consumo regional, das cenas artísticas capazes de serem auto-suficientes, ainda que isso possa parecer um pouco difícil. Afinal, diferente da parábola bíblica, existe sim um terceiro caminho.
Por sorte, cientes da necessidade do fortalecimento do núcleo regional, regiões anteriormente conhecidas pela música sertaneja, modas de viola e demais ritmos semelhantes ligaram os amplificadores em um volume um pouco mais alto. Goiás é um bom exemplo. Tiveram importância nesse movimento os grandes festivais feitos por lá como o Bananada e o Goiânia Noise.
Por sinal, é do line-up do último Goiânia Noise a banda da “Radar” desta semana. Goianos como eu, o Two Wolves investe no indie rock não tão puro, em que pequenas camadas de outras vertentes do rock aparecem, casando bem em suas composições e melodias potentes.
E nessas experimentações expostas em Just Listen To, é importante frisar o bom trabalho dos arranjos, que mesclam as influências dos músicos sem criar nenhum tipo de esquizofrenia musical.
Just Listen To, primeiro álbum do Two Wolves, foi lançado em 2015. Priorizando composições mais objetivas (apenas duas das canções ultrapassam os três minutos de duração), a banda equilibra seu lado mais experimental em canções como “Ancient Astronaut”, uma ode acidental aos londrinos do Archive.
E nessas experimentações expostas em Just Listen To, é importante frisar o bom trabalho dos arranjos, que mesclam as influências dos músicos sem criar nenhum tipo de esquizofrenia musical.
As texturas musicais, ora eletrônicas e dançantes (“Zombie Life”), ora delicadamente pulsantes e indies (“Sold Soul”), compõem uma interessante forma de ver a obra inteira, um olhar maduro e ainda raro em primeiros trabalhos.
A relação do grupo com o trabalho parece bem intimista, extraindo suas verdades cotidianas de forma sutil. O entrosamento dos músicos evidencia a estreita relação de companheirismo e entrega, a dedicação em trabalhar de forma precisa suas mais vastas ideias e referências.
Perceba que o disco flutua pelos últimos vinte anos do indie rock em cavalgadas que parecem criar uma sinergia entre público e banda. Você dificilmente não encontrará uma canção para chamar de sua.
Ao passo que isso possa ser visto como falta de identidade musical, também é possível fazer uma desconstrução lírica e rítmica e verificar que as composições seguem uma lógica própria, e que acerta ao proporcionar quebras pontuais de ritmo ao longo das 10 faixas, acalmando o público em baladas como “Ex Wife”, e convocando ao canto uníssono no vocal rouco de “Someone Who Never Came” e seus timbres que fazem qualquer fã de David Gray sorrir, ou na encantadora “Will You Be There Too”.
A força das opções feitas em Just Listen To reside principalmente na forma de apresenta ao público novas possibilidades e fórmulas dentro de um ritmo que, por vezes, dá sinal de cansaço. Acertam, ainda, em fazer isso sem soar óbvios ou pastiche musical, o que por si só já é digno de atenção e aplausos. Por fim, “That’s My Girl” cria uma rodovia que sai de Senador Canedo, terra de Mauricius Wolf, Lineker Lancellote, Raphael Tyller e Yohann Rodriguez, e os apresenta ao mundo. Forma ímpar de começar.
NO RADAR | Two Wolves
Onde: Senador Canedo, Goiás.
Quando: 2012
Contatos: Facebook | Soundcloud | YouTube
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.