Dois fatos dos mais relevantes na música nas últimas semanas: Bob Dylan ganhou um Nobel de literatura por sua maneira única de transformar canções em poesia e narrar os tempos através de versos sem perder em nada para romances. Outro fato mais geograficamente próximo, o Wilco voltou a tocar no Brasil depois de 11 anos e fez shows inesquecíveis em São Paulo e no Rio de Janeiro. Além de inspirações parecidas, o que une os dois artistas neste texto é um terceiro nome. É uma música que veio antes, de um poeta que veio antes e que, se não viesse, talvez não seriam o Dylan e o Wilco que conhecemos hoje.
Woody Guthrie nasceu há mais de cem anos e morreu nos anos 60, mas fez entre os anos 30 e 40 a sua carreira de trovador norte-americano. Durante a Grande Depressão, viajou com fazendeiros sem terra pelos Estados Unidos e desenhou em suas canções o retrato de um tempo. Na Segunda Guerra, trabalhou em navios e cantou para acalmar os espíritos dos marinheiros. Sua maneira de escrever músicas e apresentá-las, uma espécie de narrador de prosas poéticas, foi a grande inspiração para Bob Dylan. Guthrie foi o mentor de uma geração de cantores folk com consciência política e social, algo que ele carregava desde o início do século em seu violão com o famoso “essa máquina mata fascistas” escrito. Guthrie ensinou a Ramblin’ Jack Elliott o seu estilo de escrever, tocar e se apresentar e, alguns anos depois, Elliott ensinou Dylan quando a saúde de Guthrie já não o deixava mais.
Uma lista enorme de rascunhos e canções esquecidas de Woody Guthrie foi guardada por décadas e, parte delas, ganhou vida em 1998 nas sessões que originaram os três volumes do Mermaid Avenue, projeto em que Wilco e Billy Bragg cantam canções do antigo trovador. Entre elas está “Remember the Mountain Bed”. Não se sabe ao certo quando ela foi escrita por Guthrie, mas acredita-se que foi em 1944, logo que ele embarcou para a Segunda Guerra. Os versos ganharam uma melodia pensada por Jay Bennett e encontraram a voz de Jeff Tweedy. O resultado é uma das mais belas canções já feitas.
‘Remember the Mountain Bed’ é a obra de Guthrie que melhor representa o estilo que Bob Dylan aperfeiçoaria décadas depois e o levaria a ganhar o Nobel.
“Remember the Mountain Bed” é a obra de Guthrie que melhor representa o estilo que Bob Dylan aperfeiçoaria décadas depois e o levaria a ganhar o Nobel. É mais que uma canção, é uma verdadeira narrativa poética em que cada palavra e pensamento vem em um fluxo literário. É como transformar em música uma página de Hemingway. “Remember the Mountain Bed” é o centro do que Guthrie se tornou em suas experiências de vida, alguém capaz de enxergar o mundo com outros olhos e ainda se relacionar com o homem comum. Ela é uma história de amor através dos tempos. Uma trama relembrada através de detalhes, de cenas guardadas na memória, aromas, gostos e sensações. Da cor das árvores, do gosto das frutas, do cheiro do cabelo da amada trazido pelo vento. É uma trama de amor que sobrevive a tempos de seca e pobreza, que juntos, descobrem o que significa viver e morrer, descobrem o que nos prende a uma terra e o que é importante na vida a partir do momento em que libertamos a mente.
É uma canção de beleza talvez inigualável, de expressões e letras emocionantes. De melancolia profunda sobre perdas e a inevitável morte, mas de esperança latente sobre a aceitação do que é estar vivo. É uma canção sobre a necessidade de saber o que mais importa na sua vida, saber de onde você saiu, por que você trabalhou, onde você chegou e o que você cruzou para estar lá. Sobre o conforto de se livrar da dor e da angústia e saber quem você é, talvez a tarefa mais difícil de todas.
“Remember the Mountain Bed” era a grande joia esquecida entre as palavras que Guthrie uniu com maestria durante a vida. Por sorte, ela sobreviveu para encontrar a performance perfeita do Wilco (e de outras bandas e artistas que a regravaram) para se manter viva. É, de certa forma, um relato deixado por Guthrie após a morte. Se toda a sua andança serviu para algo, foi para descobrir a importância das coisas, e o recado para quem veio depois dele ficou em forma de música.