Existe uma série de nomes de músicos, cantores, produtores e compositores americanos que conseguiram uma excelente projeção nos últimos cinco anos, mas que talvez boa parte do público não tenha ligado um ao outro e nem reparado, com uma visão mais analítica, a mudança que, juntos e separados, eles têm provocado em parte da música negra. É quase como um movimento, mas talvez eles não se vejam assim, não se sintam assim criando um “tropicalismo” ou “bossa nova”, e por isso não tenham um nome (ainda). Portanto, vou chamar isso de Vanguarda Negra.
Para começar, a Erykah Badu é uma diva consolidada do neo soul e deixou isso muito claro com os dois discos New Amerykah 1 e 2 (de 2008 e 2010 respectivamente), que são simbólicos dessa novidade musical. Ao mesmo tempo em que o trabalho se chama “nova américa”, o nome do continente é estilizado para conter o nome da cantora/compositora (que também é atriz e ativista), indicando uma ênfase autoral nisso tudo. Uma mulher negra chamando a responsabilidade para si da nova música (negra ou não) com conteúdo social e político. E em sua discografia tem soul, hip hop, R&B e jazz. Um virtuoso chamado Stephen Bruner, que também atende por Thundercat, tocou baixo nas duas partes dos discos.
O DJ/produtor Steven Ellison, mais conhecido como Flying Lotus, é uma das mentes mais habilidosas e diversas da música eletrônica. Fez um dos melhores discos de 2014 – You’re Dead! – unindo hip hop, jazz e eletrônica de uma maneira única e densa. É música pop, é música para pista, mas de forma alguma é banal ou massificada. Tem três discos na conta e desde o primeiro une estilos. Já contou com a participação de Thom Yorke, do Radiohead, nos dois primeiros (de 2010 e 2012) e de Snoop Dogg e Kendrick Lamar no último. Em todos contou com a voz e o baixo de Thundercat, que é um tremendo jazzista. Em You’re Dead!, Thundercat é creditado como compositor de metade do disco.
Kendrick Lamar não é só a participação especial em “Bad Blood” da Taylor Swift. Embora seja mais comumente associado ao rap e hip hop, seu terceiro e novo disco, To Pimp A Butterfly, foi recebido com gosto pela crítica e pelo público, desde a capa até a última música, mostrando que Lamar vai além disso e aglutinou jazz, soul, funk, R&B ao seu trabalho. Novamente, não é um disco fácil e nem de temas corriqueiros. Flying Lotus foi o produtor e Bruner (o Thundercat), além de tocar baixo, cantar e compor, foi uma das peças centrais na produção do álbum.
E Kamasi Washington (conheça melhor aqui) era “só” um saxofonista de estúdio que estreou sua carreira solo no jazz contemporâneo com The Epic, um mastodonte triplo cheio de virtuosismos estilísticos. Antes, tocou nos discos de Flying Lotus, Kendrick Lamar, Herbie Hancock e de muitos outros artistas da black music, como Lauryn Hill, e sempre incorporando o jazz ao trabalho deles. O baixo venenoso de The Epic foi gravado por… Thundercat.
“Stephen Bruner, o Thundercat, tem uma carreira solo desde 2011. Antes, além de tocar com uma série de bandas diferentes, era baixista do Young Jazz Giants!.”
Stephen Bruner, o Thundercat, tem uma carreira solo desde 2011. Antes, além de tocar com uma série de bandas diferentes (ele inclusive substituiu o Trujillo, do Metallica, na banda Infectious Grooves), era baixista do Young Jazz Giants!, onde tocava ao lado de Kamasi Washington. Seu último álbum, Apocalypse (2013), e seu recém lançado mini-álbum, The Beyond/Where The Giants Roam, são uma epítome de toda essa vanguarda da música negra. Funk, soul, R&B, hip hop, rap, jazz e música eletrônica se encontram e criam uma música totalmente original, às vezes visceral (“Lotus and the Jondy”), bastante exigente (“Lone Wolf and Cub”, “Seven”, “Tenfold”, “Tron Song”), climática e terna, mesmo quando fala de morte e pesar (“Hard Times” e “Song for the Dead”). De toda essa turma, Thundercat ainda é o menos conhecido, mas basta ouvir tudo o que foi indicado e perceber que ele sempre deixou sua marca (principalmente como baixista) por onde passou e até mesmo antecipou alguns elementos que definiram You’re Dead! e To Pimp A Butterfly em seu Apocalypse. Cada um tem seu próprio estilo, mas compartilham de léxico e semântica comuns.
E há ainda a influência do cara que redefiniu o soul, meio outsider nesse movimento, mas impossível de ignorar: D’Angelo, que em 2000 mostrou como é que se projetava a música negra para o futuro com Voodoo, que redefiniu muita coisa no neo soul e no funk, e voltou apenas 14 anos depois, com o ótimo Black Messiah, causando o mesmo furor e mostrando que nesse intervalo pouca gente tinha ido longe como ele. Erykah Badu, cuja música permeou esses 14 anos de ausência de D’Angelo, e sua banda, The Vanguart, foram descobertos ao abrir um show dele em 1994.
Existem mais nomes, mas esses são expressivos e constituem quase um círculo de influências, participações e retroalimentações que mostram como a música negra dos EUA está, pelo menos em parte, se ramificando para algo mais original, mais diversa, menos comercial, mais híbrida e mais sincrética do que supõe as ondas do rádio (e do Spotify), que dão a ênfase esperada na R&B mainstream, festeira, adocicada e previsível. Não que a música de Washington, Lamar, FL, Badu e Thundercat será a dominante um dia, mas já chama a atenção e apresenta um caldeirão de música negra de uma forma mais sofisticada. E não é gourmetização da música, é vanguarda.