Na cidade, onde tudo é feito de relógio, agora vejo gente parada, flertando com a surpresa ao andar nas ruas e dar de cara com a alegria que, às vezes, só a arte possibilita. Alegria que têm tantos ritmos e nomes. Vão do samba ao rap, do forró ao carimbó, do rock à MPB, do eletrônico ao reggae. Só podia ser São Paulo e sua pluralidade pulsante, que resultou em mais de 900 atrações das mais variadas linguagens artísticas em um único final de semana.
É gente de tudo que é lado do Brasil ocupando as ruas, ocupando os corações. E começo a ocupar o meu com o som de Juçara Marçal ecoando ao anoitecer na Praça da República, no primeiro dia da Virada Cultural de 2018. A cantora, que também faz parte da banda Metá Metá, fez o público flutuar com seu MPB experimental e sua voz elétrica com músicas do seu primeiro álbum solo, o Encarnado.
Dentre o repertório, cantou “Não tenha ódio do verão”, de Tom Zé, e avisou a platéia que era uma música necessária para a contemporaneidade no Brasil. Um trecho da letra diz: “Não tenha ódio no verão / Você vai acabar / Comendo brasa no tição / Assando o rabo no fogão / Isso arrebenta uma nação”.
Depois de Juçara, parti para a Rua Consolação atrás do trio elétrico do Caetano Veloso com o bloco Tarado Ni Você. Em meio à rua, que parecia com as de Recife no carnaval de tão cheia, infelizmente não se conseguia ouvir a música direito.
E se tudo ficasse Odara?
Mas mesmo com o aperto da rua lotada e o som baixo, o que encantava era todo mundo cantando em coro as músicas de Caê. A faixa “Odara” parecia um mantra que as pessoas repetiam juntas: “Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara / Minha cara minha cuca ficar odara / Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara”. Quem dera que aquela energia coletiva tornasse o mundo ou pelo menos o Brasil “odara”.
O show também foi de protestos. O Bloco Tarado Ni Você e outros artistas criticaram o Projeto de Lei 6299/02 (Pacote do Veneno), que está em trâmite na Câmara dos Deputados e amplia o uso de agrotóxicos no país. O público também se manifestou em apoio à causa e ao longo do trajeto gritos como “Lula livre” e “Fora Temer” se misturavam às músicas de Caetano.
Depois de Caetano, o dilema era ir ou não para a Chácara do Jockey, que contou na madrugada de domingo com shows, como da Letrux cantando Madonna, Linn da Quebrada com Jaloo e Liniker, e muita música eletrônica – variando do noise e experimental ao house e techno. Mas como sou uma só e tinha a expectativa que Elza cantasse o álbum lançado no dia anterior (18/05), Deus é Mulher, resolvi ficar.
E, logo, entrei na viagem psicodélica do grupo goiano Boogarins, regada a muita Catuaba, porque aqui é proletariado mesmo e só assim pra se esquentar. Já tinha assistido a dois shows da banda, que foram incríveis – e esse não foi diferente. Tocaram músicas dos seus dois discos, As plantas que curam e Lá vem a morte, e levaram o público ao êxtase.
Deus é mulher e se chama Elza Soares
Só podia ser São Paulo e sua pluralidade pulsante, que resultou em mais de 900 atrações das mais variadas linguagens artísticas em único final de semana.
Um dos momentos mais aguardados da noite então chegara, o show da Elza Soares. Não teve Deus é mulher, mas teve “A Voz e a Máquina”, um show incrível que resgata clássicos da carreira da artista, como “Hoje é dia festa” e “A Carne”, e os dá novas versões com samples, loops e drum machines articulados pelos DJs Ricardo Muralha e Bruno Queiroz, e a guitarra de Caesar Barbosa.
No palco Queer na Praça da República, Elza protestou contra a LGBTfobia, o racismo, a violência e a repressão política no Brasil. Trouxe duas grandes músicas de Cazuza, “Milagres” e “O Tempo Não Pára”, e ainda incluiu em seu repertório o discurso histórico de Martin Luther King, “I have a dream”. E, para finalizar, cantou músicas do premiado álbum a A Mulher do Fim do Mundo, mostrando mais uma vez que as mulheres são fortes e que não vamos mais nos calar diante da opressão patriarcal. É a mulher do fim do mundo, é quem canta até o fim.
Tudo é divino maravilhoso
Após mais um show épico, entrei em transe com as performances no palco do Circo e acabei no palco da Cultura Popular, dançando um carimbó gostoso ao som do Grupo Kuatá de Carimbó. A música tradicional do Pará conseguiu esquentar a noite fria de São Paulo, colocando todo mundo pra dançar juntinho.
É, a virada é assim, “ao dobrar uma esquina, uma alegria”. Você vai andando e achando coisas que você nem sabia que estava na programação, mas que emocionam, parecem um presente divino. Como essa bailarina dançando ao som do multi-instrumentista francês Yann Tiersen no céu paulista.
Vídeo: Yara Lopes.
Ou a apresentação dessas mulheres negras maravilhosas do projeto “A rua é clássica”, que fez todo mundo parar no viaduto do Chá.
Da visibilidade lésbica ao empoderamento negro
No segundo dia da virada, consegui ver só dois shows completos, mas que valeram muito a pena. A compositora carioca Letícia Novaes tocou seu primeiro álbum com o pseudônimo Letrux, o Letrux em noite de climão, que resgata a pegada dançante dos anos 80 e flerta com a tragicomédia.
Iniciou o show com a faixa “Vai Render”, e logo depois tocou a efervescente “Coisa banho de mar”. Um dos pontos altos do show foi “Que Estrago”, a música que vem pra quebrar os padrões heteronormativos e dar voz a visibilidade lésbica na música brasileira.
A rainha do climão ainda nos presenteou com o gostinho do seu show na madrugada de domingo no Jockey e lançou o hino “Express Yourself”, da Madonna. Pra arrematar o show, cantou “Noite Estranha, Geral Sentiu” com uma adaptação digna para os corações sofridos daquela tarde fria e ensolarada: “Daqui a pouco anoitece / sai desse climão / Que tarde estranha, geral sentiu”.
Pra finalizar com fineza a virada, Rincon Sapiência, vulgo Manicongo, venho com tudo no palco do Rap para mostrar que se “a coisa tá preta, a coisa tá boa”, e que o preconceito racial deve minar. O cruzamento da Rua Líbero Badaró e o largo de São Bento se tornou um mar de gente. De onde eu estava, não se via o fim da multidão.
O show teve o repertório do disco Galanga Livre, carregado de referências da cultura afro e de misturas musicais – rock, blues, R&B, afrobeat, funk, trap -, o que dá uma sonoridade única ao seu som e inova o rap.
E, assim, a virada não encerrou ali, Rincon propagou conhecimento com uma verdadeira aula dançante sobre a história negra e a desigualdade social brasileira com versos políticos, de coragem e de reconhecimento. E, claro, não deixou de puxar o “Fora Temer”, que ecoou na voz de artistas e do público em praticamente todos os shows da virada.