Em março de 1974, assumia a presidência do Brasil o general Ernesto Geisel, que fora escolhido pelo Colégio Eleitoral, em janeiro deste mesmo ano. O clima era de muita tensão, afinal, o antecessor, general Emílio Garrastazu Médici, permitira a expansão da ala repressiva dos militares e, como a pior das consequências, vários assassinatos foram cometidos.
Além da violência física, o controle sobre órgãos da imprensa acirrou. Na economia, o plano de governo buscou um modelo de crescimento baseado no Estado e nas multinacionais que, mais tarde, embalado pelo consumismo e pelo futebol tricampeão do Brasil, em 1970, seria chamado de “milagre econômico”.
Diante deste panorama, Geisel assume e meses depois promete uma distensão gradual e segura. Mas no ínterim, cassa e prende o deputado baiano Chico Pinto, porque condenara em uma declaração à imprensa a presença do ditador chileno Augusto Pinochet no Brasil.
Havia, no entanto, um esforço no sentido da atenuação da repressão: representantes da Igreja eram ouvidos pelo governo, a fim de tratar das questões de tortura e de desaparecidos, ao mesmo tempo em que sinalizava com possibilidades de eliminar a censura – que continuava, para todos os efeitos.
Foi neste período que censores proibiram o cenário do show “Tempo e Contratempo”, com o MPB-4. Posteriormente, a própria gravação do disco do grupo recebeu veto, não escapando da proibição.
Para Chico Buarque, que acabara de ver censurada Calabar, peça de teatro musicada, escrita em 1973 em parceria com Ruy Guerra, a situação ficou insustentável. Neste período, havia uma proporção de duas músicas vetadas para uma liberada, com cortes.
Deste modo não haviam canções suficientes para um novo disco. Foi quando entrou em cena o jogo de cintura: o LP Sinal Fechado (1974), com interpretações de outros compositores, dentre os quais, Julinho de Adelaide – cuja canção, “Acorda, amor”, tornou-se um dos grandes sucessos do disco.
A grande sacada de Sinal Fechado estava baseada na seguinte teoria de Chico: compositores que já tivessem uma letra proibida ficavam marcados numa lista maldita, da censura. Algumas canções eram vetadas simplesmente por terem o nome no índex. E foi assim, ao apostar na suposta lista – e na falibilidade dos censores – que nasceu “Acorda, amor”, tendo como autores Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, contra os quais não pesava nenhuma suspeita.
‘Nunca fiz música pensando na filha do Geisel”, declarou Chico à revista Almanaque em 2007, “mas essas histórias colam.
Chico acertou na mosca e a canção foi aprovada sem restrições. A imprensa, apesar de censurada, sobre este assunto estava bem informada e ironizava os censores, noticiando a descoberta de um “novo compositor” oriundo da favela da Rocinha.
A letra de “Acorda, amor” descreve as circunstâncias da prisão de um indivíduo que, atemorizado pelos ruídos dos homens dentro da residência, pede à mulher que desça as escadas para checar o que acontece.
Episódio muito parecido com a prisão de Chico Buarque, em dezembro de 1968, que na ocasião fora surpreendido dentro de casa por agentes da ditadura que o levariam para depor.
Em setembro de 1974, Julinho de Adelaide cedeu uma entrevista ao dramaturgo Mario Prata, publicada no jornal Última Hora, de São Paulo. Nela, não se poupou elogios à censura e a “revelação da MPB” até demonstrava um pouco de ciúme de Chico Buarque. A estratégia de usar um alter ego já havia dado certo em 1973, na canção “Jorge Maravilha”, cantada pela primeira vez no concerto O Banquete dos Mendigos, idealizado e dirigido por Jards Macalé.
Neste episódio, para conseguir a liberação, Chico inseriu a letra que lhe interessava misturada a outros textos, como uma espécie de despiste. A canção foi enviada à Polícia Federal, sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Não havia obrigação de gravar todo o conteúdo aprovado, assim, as partes iniciais e finais das estrofes foram excluídas. Logo os mais atentos perceberam uma referência ao general Geisel, cuja filha, Amália Lucy, era admiradora assumida de Chico.
O Jornal do Brasil publicou uma matéria sobre censura em 1975 e nela revelou que Julinho de Adelaide e Chico Buarque se tratavam da mesma pessoa. A Polícia Federal passou a exigir cópias de RG e do CPF dos autores, a partir de então, a fim de evitar a manobra de contorno à censura. Sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, Chico ainda deixou a canção “Milagre brasileiro”.
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