É noite de quinta-feira. Em meio às mesas do Café do Teatro – tradicional bar de Curitiba, associado, como o próprio nome sugere, ao movimento artístico da cidade – um fluxo crescente de pessoas dá a entender que algo diferente ocorrerá por ali. Logo, alguém passa colando nas mesas um QR-Code que leva a uma resposta: um concurso destinado à arte drag vai se desdobrar no palco próximo à entrada do bar.
Criado em 1987, o Café do Teatro – que, depois de 35 anos no mesmo ponto, na rua Amintas de Barros, retornou às atividades há quase um ano do outro lado da quadra, na rua XV de Novembro – tem se tornado um ponto privilegiado para apresentações artísticas a públicos mais modestos, como convém a um bar. O novo Café conta com um espaço cênico especial em que muitos performers da cidade têm encontrado a sua expressão.
Dentre os shows que têm ocupado o local, há um que se encerra nessa semana, no dia 31. Quem esteve no Café durante as quintas do mês de agosto viu o mesmo ritual acontecer: por volta das 20 horas, subiam ao palco duas drags queens com a desenvoltura e o humor para estarem presentes em qualquer um dos produtos da franquia de RuPaul’s Drag Race. A Dita e Juana Profunda seriam as apresentadoras em todas estas noites em que sete drags se “enfrentaram” em performances nas quais seus talentos em várias nuances – como a dança, a atuação e, claro, a criatividade para elaborar um número original e entreter as plateias.
Mais do que uma competição, Drag Zona é um espetáculo bolado por Dan Venturi, que dá vida à A Dita (com o artigo definido incluso no início). O intuito do empreendimento é bem claro: dar espaço para que a arte drag feita em Curitiba e região possa brilhar e para que as (e os) artistas – drag queens e drag kings – sejam valorizados para além dos espaços mais segmentados.
Drag Zona: a ideia por trás do concurso
Formado em Educação Física e Teatro, Dan Venturi passou 11 anos no Rio de Janeiro, onde se aprofundou na arte drag e passou a dar corpo, espaço e voz para A Dita. A referência de sua drag é Madonna em uma fase bem específica: ela encarnou Dita como seu alter ego de dominatrix durante o disco Erotica, de 1992, e o livro Sex, do mesmo ano. A referência original da persona criada por Madonna é a atriz alemã Dita Parlo – que, inclusive, é homenageada também no nome da artista burlesca Dita Von Teese.
“A ideia é prestigiar toda a arte transformista no concurso, seja drag queen, drag king, draglesque, boylesque. Pessoas trans são muitos bem-vindas com as suas drags”.
Dan Venturi, que vive A Dita
Foi no período no Rio de Janeiro que Dan desenvolveu a sua persona artística, baseada em referências brasileiras e internacionais. “A base da minha drag é a performance e a dança. Às vezes sou impersonator da Madonna, mas também trabalho com outras divas, especialmente as que dançam e performam, como Britney Spears, Christina Aguilera, Janet Jackson, Beyoncé, Rihanna, e as brasileiras, como Ludmilla, Luiza Sonza, Iza… Gosto também de trabalhar com a androginia – Dzi Croquettes é uma grande influência para minha arte drag transformista”, explica.
No Rio de Janeiro, Dan trabalhou com muita gente importante – como Pabllo Vittar e Carlton Wilborn, dançarino de Madonna – e participou de concursos de drags, como o Rival Rebolado, no Teatro Rival, e o The Queen Brasil. Ao retornar para Curitiba, entrou em contato com a cena drag local. “Morei muitos anos no Rio, e lá é muito tradicional, há muitos concursos. Isso já existiu por aqui, mas notei que não havia mais, então decidi desenvolver, trazer para cá o que achava legal, e buscando fazer diferente o que não achava tão legal assim”, conta Dan.
O próximo passo foi divulgar às interessadas e interessados que quisessem participar. A proposta do Drag Zona foi ser totalmente inclusivo, sem distinções. “A ideia é prestigiar toda a arte transformista no concurso, seja drag queen, drag king, draglesque, boylesque. Pessoas trans são muitos bem-vindes com as suas drags. É por isso que não quis usar queen no nome do concurso, para que todo mundo se sinta acolhido”.
Acolhida e valorização da arte drag
Além de A Dita, o concurso também conta com o apoio e participação de várias e vários artistas importantes dentro da cena drag local. Dan conversou com as amigas e amigos que o acolheram no retorno a Curitiba e os “convocou” para fazer parte do projeto do Drag Zona.
Bem aos moldes da tradição do concurso de calouros – que vão desde RuPaul’s Drag Race até o Show de Calouros do Sílvio Santos –, Drag Zona tem um corpo de jurados com uma participação bem marcante. Atuam nessa função Linda Power, Kimberlly Bey e Lola Lombardi, além de um jurado convidado.
Soma-se ao grupo a repórter Gabryela Jhones, que, em cada dia de competição, tem também a tarefa de comandar uma dinâmica entre as drags e colocar “fogo no parquinho”. No apoio do projeto, estão ainda quatro produtoras e o fotógrafo Luís Knapik.
A co-host
Na apresentação, formando uma dupla com A Dita, está Juana Profunda, drag queen já bastante conhecida em Curitiba. Ambos já se conheciam antes da mudança de Dan para o Rio, pois trabalhavam com teatro, no grupo Pé no Palco, e frequentavam o mesmo estúdio de dança. Ao retornar para a cidade, logo pensou em Daniel Valenzuela, o ator por trás da Juana Profunda. “Quando quis trabalhar com outras drags, ela me veio à mente, pois sempre admiramos o trabalho uma da outra”, comenta Venturi.
Valenzuela trabalha com teatro há 15 anos e já atua como drag há quase 10. “Dentro do teatro, eu fui encontrando os meus caminhos e achando a força do meu discurso realmente pela arte drag. A princípio, começou com um flerte, em blocos de carnaval nas ruas da cidade. Mas, por já fazer teatro e me interessar por arte, eu fui entendendo que aquela curtição tinha um envolvimento artístico que eu gostaria de explorar. Havia também uma necessidade muito grande de me expressar, estava sentido essa necessidade de encontrar esse caminho. Foi aí que as coisas começaram a se juntar”, disse em entrevista à Escotilha.
Aos poucos, vinha ao mundo Juana Profunda. “Muitas coisas que estavam ali soltas dentro de mim eu fui colocando na minha personagem. Foi como se a drag dentro de mim fosse conectando pedacinhos em mim que estavam esperando para acontecer”, compartilhou Daniel.
Juana Profunda está à frente de outros projetos na cidade. Ao lado da drag queen Linda Power, ela apresenta um cabaré semanal do próprio Café de Teatro, chamado O Palco é Seu. É uma noite de palco aberto em que artistas de várias linguagens se inscrevem e se apresentam. “Tem sido bem legal, pois há uma fusão bem interessante de trabalhos. Os resultados dessas noites estão bem inusitados”, menciona.
Outro projeto encabeçado pela artista é O Maravilhoso Cabaré, exclusivo para drags. Ele já acontece há seis anos, sem periodicidade fixa. “Eu sempre componho o elenco pensando na diversidade das artistas drags da cidade, das mais antigas às mais novas”, conta. Em outubro, encabeça a Combo Drag Week, um festival de cinco dias com várias atividades vinculadas à arte drag, como apresentações, shows, oficinas, rodas de conversa e mostras de cinema.
Já no Carnaval, Juana organiza sempre A Marcha das Mil Drags, um bloco em que monta um grande desfile de drag queens, drag kings e artistas do burlesco, ao som de uma banda. “Carnavalizamos e ocupamos um lugar na rua, colocando nossos corpos montados e dissidentes para ocupar o seu lugar, em um espaço acolhedor, em que todo mundo se sinta à vontade. É mais um lugar em que elas podem sair e existir com liberdade”, explica.
Valenzuela afirma que seu trabalho sempre foi gregário, e voltado à valorização de todos os artistas que fazem drag. “Eu sempre busquei agregar as artistas que eu conheci em Curitiba. E sempre me inspirei muito nas que estão trabalhando há mais tempo na cidade, e procuro trazê-las nos meus projetos, assim como as novas gerações, que também têm muita vontade de se expressar, de ter um palco para se apresentar. Meu trabalho então tem muito dessa união, de proporcionar lugares seguros, de compartilhar experiências”.
“A cena de Curitiba vai mudando. Ela já teve grandes momentos com muitas casas”.
Daniel Valenzuela, que dá vida a Juana Profunda
Juana Profunda já viu várias mudanças nos movimentos da cultura local. “A cena de Curitiba vai mudando. Ela já teve grandes momentos com muitas casas, nos anos 90, a cena do bate cabelo, existia bastante trabalho para as drags, porém era muito segmentado. Eu vi alguns momentos de baixa, com poucas casas querendo contratar drags”, compartilha.
Tanto Juana Profunda quanto A Dita concordam que a franquia criada pelo programa RuPaul’s Drag Race fez com que o interesse pela arte drag crescesse mundialmente, abrindo novos espaços de trabalho em contextos menos segmentados, como uma casa noturna LGBTQIA+. Contudo, A Dita afirma que o Drag Zona aproveita das referências de RPDR, mas pincela com elementos brasileiros, como as que viu nos concursos no Rio de Janeiro e até dinâmicas de programas como Big Brother Brasil, que cumprem a função de “apimentar” uma suposta rivalidade entre as drags.
No palco, as duas apresentadoras – A Dita e Juana Profunda – demonstram uma sintonia fina. São engraçadas e rápidas, além de extremamente carismáticas. Mesmo que comandem uma competição, fica bastante claro que o concurso é uma forma de louvação ao trabalho das artistas. Não por acaso, não há eliminações no Drag Zona, apenas um pódio que vai mudando a cada semana.
Mas, mesmo assim, há muitos reconhecimentos para quem chegar no posto mais alto. A vencedora do primeiro Drag Zona vai levar para casa um look completo da marca Butterfly’s New Fashion, da jurada Kimberlly Bey, uma faixa, uma coroa, um troféu e uma sessão com o fotógrafo Luiz Knapik.
A segunda colocada ganhará uma pescoceira feita por Carmen Von Blue, um penteado de peruca de Gabryela Jhones e uma consultoria de personal training com a produtora Daniela Bueno. E, como bom concurso, não poderia falta a Miss Simpatia: ela será escolhida pela própria A Dita, e vai receber uma consultoria de performance com ela.
Todas as facetas da arte drag
Drag Zona faz questão de apresentar um universo acolhedor para todas as manifestações da arte drag. Inclui-se aqui o drag king, em que artistas performáticos do gênero feminino montam um drag masculino. Inclusive, uma das categorias do concurso foi denominada “Kingaral realness”. Neste dia, no corpo de júri convidado estava a atriz, bailarina e terapeuta corporal Rúbia Romani, que dá vida ao drag king Rubão. À Escotilha, Romani conta que, quando começou a explorar essa arte, em 2014, havia muito pouca gente que a conhecia. “Foi uma conspiração do universo quando comecei a fazer. Eu estava passando por um momento da vida de muitas dores em relação às masculinidades, e estava com muita raiva dos homens”.
Rúbia era então casada com um bailarino, com quem tinha uma conexão de corpo muito intensa. Com a separação, ela começou a passar por conflitos. “Sentia como se ele estivesse no meu corpo. Como se eu estivesse com o gestual dele, a risada dele, e isso foi me atormentando”. Surgiu aí a aproximação com a arte drag king, ainda de forma mais intuitiva. Ainda em 2014, ao trabalhar em um festival de dança contemporânea na Bahia, ela viu um grupo de artistas brasileiras que montaram uma peça chamada Reproduction. Eram, então, 15 drag kings em cena. “Era um espetáculo super erótico, ligado à masculinidade hegemônica, e isso explodiu a minha cabeça”, conta.
Ao voltar para Curitiba, a atriz passou a investigar esse universo. Foram três anos de pesquisa e atuação sozinha como drag king, em meio às drag queens. Nascia então Rubão, cujas performances unem a crítica social com a arte burlesca. Hoje, a arte é sua principal atividade profissional, e Rubão comanda o Coletivo Kings of the Night.
Embora seja avesso a concursos (que, segundo sua visão, não promovem a união em uma esfera que já é difícil), Rubão vê o Drag Zona como diferente, por não ser eliminatório. “O que tenho visto é que as competidoras competem mais com elas mesmas, o que vai ajudando a elevar o nível do trabalho. E isso é legal para ter uma autocrítica, pois drag não é bagunça”. Ou seja, o grande ganho do Drag Zona é a oportunidade de discutir e aprimorar a arte. “Além disso, o concurso traz uma oportunidade de debater as diferentes linguagens dentro do drag. Estou achando bem legal, e penso que vai impactar a comunidade”, conclui.
As drags participantes e a abertura a novos públicos
Dan Venturi ficou surpreso com a quantidade de drags que se candidataram ao concurso – a seletiva envolvia mandar um vídeo de até 2 minutos, apresentando seu trabalho. Ao final, foram sete escolhidas. Segundo o organizador, são “todas muito empenhadas, entregando bastante, num clima de união, de fazer a coisa crescer junto”.
Boa parte do grupo tem formação em teatro e dança. Uma delas é Miss Telma, drag de Eduardo Telma, de 35 anos. Natural de Agudos do Sul, cidade de pouco mais de 10 mil habitantes a 70 quilômetros da capital paranaense, Eduardo é formado em dança pela Escola de Dança do Teatro Guaíra, e já se apresentou em várias companhias e locais, incluindo o Theatro Municipal de São Paulo e o Natal do Palácio Avenida, tradicional evento de fim do ano em Curitiba.
Telma atua também como professor, e, assim como vários outros artistas, começou a fazer drag de brincadeira, em festas à fantasia. Em 2021, inscreveu-se no concurso Purpurina, promovido por uma produtora de Florianópolis, e ficou entre os finalistas. No ano seguinte, ele se apresentou pela primeira vez como Miss Telma no Combo Drag Week em Curitiba.
Sua drag tem muitas faces. “Ela é meio mutante, gosta de usar suas habilidades do balé e do circo e fazer um grande show”, explica. Suas performances são elaboradas a partir de várias referências, incluindo elementos da cultura pop. Em uma das semanas, por exemplo, Miss Telma esteve no palco do Café do Teatro como o personagem da lagosta no desenho das Meninas Super Poderosas.
Outra participante é Andreia Grace. Seu primeiro contato com a arte foi por meio de RuPaul’s Drag Race. “Antes, eu trabalhava como engenheira civil e depois do programa, minha vida deu um giro total. Comecei a querer a fazer drag porque eu sempre soube que existia uma alma de artista dentro de mim e porque estava disposta a explorar uma feminilidade que sempre me foi repreendida, também fazendo questionar quanto à minha identidade de gênero”, conta.
“Curitiba ama a arte drag, tem público, mas falta o reconhecimento devido, por exemplo, nos cachês”.
Rúbia Romão, o drag king Rubão.
Para Andreia, no início foi difícil compartilhar os seus anseios com a família, mas, hoje, sua mãe e sua tia estão sempre presentes nos shows no Drag Zona. Ela é aluna de dança de A Dita, que a estimulou a participar do concurso. “Foi a melhor decisão que eu tomei. É um ambiente extremamente acolhedor, e A Dita é muito sensível com as participantes”, compartilha. Mesmo tendo ficado no bottom em algumas fases do concurso, Andreia nunca se sentiu diminuída. “Até porque a concorrência é babadeira! Sou muito grata à oportunidade de poder estar no palco e viver a minha arte que estava guardada há tanto tempo”, fala.
Eduardo Telma teve um certo receio de se inscrever no concurso, pois imaginava que seria muito intenso. Além disso, a arte drag é cara e ainda tem pouco retorno financeiro. Mas conta que, depois de entrar, ficou muito empolgado. “Cada semana, tem sido bem desafiadora, e é muito bom conhecer outros artistas e as suas diferentes formas de fazer essa arte tão linda”, diz. Segundo A Dita, o retorno do público no Café do Teatro tem sido extremamente positivo. Há pessoas que vão lá para jantar e acabam retornando nas semanas seguintes para acompanhar o concurso – que, acima de tudo, é um grande show.
Juana Profunda avalia o projeto como um grande sucesso, tendo sido abraçado pelo público. “Tem torcidas, votações, muito engajamento online. A forma com que A Dita trouxe o formato do concurso é a novidade do Drag Zona, com todas tendo a oportunidade de mostrar todas as faces do seu trabalho”, opina. Juana também destaca as categorias criadas pelo concurso como uma grande novidade. “Eu mesma descobri coisas novas sobre a minha drag com as apresentações. Foi super bem recebido, e estamos com plenas condições de já pensar uma nova temporada”, revela.
Ainda assim, há passos a serem dados dentro da valorização do drag em Curitiba. Para Rúbia Romani, a cidade ainda não reconhece o trabalho da forma como poderia. “Ainda se paga muito mal, sendo que é uma arte cara. Só uma peruca já vai muito dinheiro. Não dá para ficar repetindo muito look. Acho que Curitiba ama a arte drag, tem público, mas falta o reconhecimento devido, por exemplo, nos cachês. Falta abertura”, afirma.
No dia 31 de agosto, o primeiro Drag Zona chega ao fim com uma última competição, em que todas as drags concorrem na categoria “A Noite das 1000 Madonnas”. Há planos de fazer novas edições do concurso em breve, explica Dan Venturi, mas não há previsão de data até o momento da publicação desta reportagem. Enquanto isso não acontece, o Café do Teatro segue sendo uma das casas mais acolhedoras para a arte drag em Curitiba, sempre com a promessa de receber bem todos os seus visitantes que apoiam esta manifestação artística.
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