Não é novidade que a equidade de gênero é uma realidade ainda distante no nosso país. As mulheres não detêm as mesmas oportunidades e direitos concedidos aos homens, apesar de serem maioria no Brasil. Essa disparidade pode ser percebida na participação econômica, na representação política e, principalmente, no mercado de trabalho.
Recentemente, o Ministério do Trabalho revelou que, apesar das mulheres estarem conquistando mais espaço no mercado formal, a ocupação de vagas por elas ainda é inferior em relação às ocupadas por homens. Assim como ainda ganham menos do que eles, mesmo tendo mais tempo de estudo e qualificação.
“Na média, as mulheres continuam ganhando menos que os homens. Essa situação pode ser explicada pelo fato de que a participação feminina no mercado de trabalho formal está concentrada em ocupações que apresentam remuneração mais baixa. Além disso, as mulheres ocupam menos os cargos de chefia e ainda há fatores discriminatórios no ambiente de trabalho, que precisam ser combatidos”, explica Mariana Eugênio, analista de Políticas Sociais do Observatório Nacional do Mercado de Trabalho do Ministério do Trabalho.
Cenário desnivelado no audiovisual brasileiro
No audiovisual, esse quadro de desigualdade não é diferente. Em junho desse ano, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), agência que fomenta, regula e fiscaliza o mercado do cinema e do audiovisual no Brasil, publicou um informe que analisa a diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros em 2016. A partir dele, foi possível comprovar que o mercado cinematográfico brasileiro é dominado por homens brancos.
A pesquisa analisou os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016, segundo dados do Sistema de Acompanhamento da Distribuição em Salas de Exibição (Sadis), levando em consideração direção, roteiro, produção executiva, elenco, direção de fotografia e direção de arte.
Dos 1.326 profissionais analisados, somente 37,9% eram mulheres, enquanto 70,7% eram pessoas brancas. Apenas 19,7% dos longa-metragens analisados foram dirigidos por mulheres, sendo nenhuma delas negra. Grupos exclusivos de mulheres roteirizaram 16,2% dos filmes, estiveram à frente da direção de fotografia em 7,7% e na direção de arte em 5,6%. Além do mais, as mulheres formaram apenas 40% do elenco principal dos filmes de ficção do ano, do qual apenas 5% eram negras.
“As dificuldades da mulher no meio audiovisual são os mesmos que em outros meios – dificuldades para adentrar no mercado, para galgar postos de poder e menores salários. No Brasil, temos esse agravante, o mercado de trabalho é excludente com o negro, e ainda mais com a mulher negra”, afirma Lilian Solá Santiago, em entrevista concedida à Escotilha.
Cineasta, produtora cultural e professora universitária, Lilian Santiago é responsável por participar da produção de dezenas de obras brasileiras nos últimos anos (Família Alcântara, Graffiti, Latitude Zero), além de ser um nome importante no cinema negro brasileiro.
“Historicamente, as mulheres negras formam o grupo que se encontra em situação mais precária e vulnerável em relação ao trabalho. Logo, esse lugar de ‘direção de filmes de longa-metragem lançado comercialmente’ é um espaço exclusivo, onde as mulheres brancas conseguem chegar cinco vezes mais rápido que uma mulher negra”, completa Lilian Santiago.
A mesma pesquisa apontou que apenas na produção executiva o número de mulheres se destaca ao de homens. 39,7% são de equipes formadas apenas por mulheres, enquanto 31,2% apenas com homens. Para Anna Muylaert, um dos principais exemplos de sucesso feminino no audiovisual brasileiro, a razão para isto pode ser encontrada num costume muito frequente na indústria do cinema nacional.
“A produção executiva pode se assemelhar ao trabalho da dona da casa, que organiza tudo, faz tudo. Uma função que, apesar de ser de liderança, é uma liderança na sombra. Além do mais, a maior parte das produtoras executivas produz normalmente para um diretor homem. É uma tradição no Brasil de cineastas homens serem casados com suas próprias produtoras executivas, mas quem brilha são os homens”, explica Muylaert.
Em termos de formato, o documentário é o mais trabalhado por mulheres, que dirigiram 29% dos filmes exibidos em circuito comercial no ano de 2016, e foram responsáveis por 25% dos roteiros. Nome por trás de longas que misturam realidade e ficção, entre eles o elogiado Era o Hotel Cambridge (2016), a cineasta Eliane Caffé acredita que uma das explicações possa ser encontrada na maior facilidade em obter financiamento para projetos deste gênero.
‘As dificuldades da mulher no meio audiovisual são os mesmos que em outros meios – dificuldades para adentrar no mercado, para galgar postos de poder e menores salários. No Brasil, temos esse agravante, o mercado de trabalho é excludente com o negro, e ainda mais com a mulher negra.’
“Creio que existem muitos fatores que influenciam a maior presença de mulheres nesse formato, um deles é que o acesso ao financiamento para realização de documentários é bem mais flexível e amplo do que para os projetos de ficção. Por outro lado, a militância política das mulheres em vários segmentos sociais está aumentando a cada dia, e o gênero documental permite uma reflexão artística muito direta e menos onerosa (em termos de produção) no embate diário com os problemas”, explica.
A desigualdade escancarada
O GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), núcleo de pesquisa com sede no IESP-UERJ, elaborou um boletim que analisou raça e gênero no cinema brasileiro de 1970 a 2016, tendo como base os dados disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA – Ancine).
Neste trabalho, foram analisados os filmes de grande público (acima de 500.000 espectadores) disponíveis em listagens do OCA, ignorando documentários e filmes infanto-juvenis. O resultado é bem desanimador. Dos longa-metragens analisados, apenas 2% foram dirigidos por mulheres, sendo todas brancas. Já o número de mulheres que assinam o roteiro ficou em 8%. Os números também são baixos no que se refere a elenco: 39%, sendo apenas 2% composto por mulheres negras.
Além dos resultados do trabalho do GEMAA coincidirem com o informe divulgado pela Ancine, estes dados demonstram que a história do cinema brasileiro é contada, primordialmente, a partir do olhar de homens brancos, e que as mulheres, sobretudo as negras, não detêm um espaço considerável na produção de obras que repercutem e alcançam o público.
“Até hoje, para uma mulher conquistar espaço no audiovisual foi necessário o dobro do trabalho, o dobro do empenho e muito talento, se comparada com seus colegas homens. As diretoras têm que ralar o dobro para realizarem seus projetos e depois de prontos têm que ralar o quádruplo para que se interessem por seu trabalho. O mercado ainda não está preparado para mulheres líderes, ele está organizado para fomentar mais e mais a produção e a liderança masculina. É um jogo muito antigo”, comenta Anna Muylaert.
Contudo, não vivemos mais em uma época que questões sociais como essas são deixadas do jeito que estão, como expõe a cineasta Lilian Santiago. “Muita coisa tem mudado. As mudanças, infelizmente, ainda não são sentidas amplamente, mas a cada ano as mulheres vêm tomando mais consciência de sua força e poder. Muita coisa mudou, e muita coisa ainda há por mudar, principalmente no que tange ao acesso a cargos de poder e decisão. Já conseguimos ver até um modo feminino de gestão audiovisual, e isso é muito importante, porque não basta mudar o gênero da direção, mas imprimir modos mais humanizados e equilibrados de trabalho”.
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