Chamavam-na Ana. Onde quer que fosse, por onde arrastasse suas sandálias de couro cobertas de pedras que imitavam esmeraldas, era simplesmente Ana. Ana e nada mais: sem sobrenome, herança ou história. Às vezes, muitas vezes na realidade, parecia mais um fantasma perdido no tempo. Uma assombração vinda de longe que ao invés de correntes arrastava as sandálias gastas pela eternidade.
Tinha os cabelos negros, cortados na altura dos ombros, as bochechas flácidas e os olhos escondidos atrás de um par de óculos de lentes grossas e aros azuis. Seu olhar era único. Olhar bate-pronto, que feria como tiro de caramuru e furava o nosso couro feito fosse um festim de íris guiado pela saudade. Um olhar frenético, passadeiro, que se debatia de canto em canto como se fosse um pássaro preso num quarto sem janelas. Tinha um tanto de calma e outro tanto de fera. Era Ana, mas já havia sido Cida, Branca, Janice.
Contava com entusiasmo histórias das quais não lembrava nem a metade. Tinha no sorriso, além da esperança, a ferrugem de um tempo que pesava a todo instante em suas costas arqueadas. Ana, apesar da idade, sorria feito criança. Aparentava ter passado dos cinquenta, mas era impossível definir ao certo quantos anos havia arrastado no calendário. As memórias que lhe escorriam gradualmente da cuca pareciam pousar ocultamente nas marcas profundas de seu rosto pálido. Os dedos, amarelados feito as páginas de um livro esquecido na estante, tamborilavam de nervoso diante do branco que lhe arrancava da ressecada boca nomes, datas e lembranças.
Consta que em priscas eras foi atriz e que nessa época brilhou feito estrela guia no municipal, encantando multidões e levando meio mundo às lágrimas com sua Eurídece. O passado, do qual não se lembrava, era monumental. O presente, que havia deixado de viver, um breu triste e sem sentido. Futuro não havia, infelizmente.
O ofício ao qual tinha se dedicado com afinco e sacrifício era agora um sonho inatingível, impossível de ser levado a diante por conta de um diagnóstico, por causa dessa falha silenciosa que aos poucos corroera toda a sua memória transformando a atriz num pêndulo louco balançando entre a melancolia e a impossibilidade de acordo com a brisa do dia. A memória, essa ferramenta de trabalho da qual havia usado e abusado a vida inteira, resolveu lhe faltar quando mais precisava.
O trabalho do ator é o trabalho do tempo, das lembranças que impregnam o palco com a beleza do ofício do teatro. Não há arte sem memória, como a vida também prescinde dessa joia preciosa que se esvai pouco a pouco de nossa mente através do tempo.
Sem poder opinar diante do carrasco, Ana apenas aceitou sua sina de esquecida e se esqueceu também num canto, junto às lembranças que não guardava daquele palco de outrora, agora tão distante. Pouco a pouco os amigos também acabaram por esquecer de Ana. Com o tempo, tornou-se um fardo pesado demais para se carregar cena a dentro, ficando jogada às coxias como os objetos que empoeiram a espera de mais uma chance de brilho. Ana, antes parte do elenco, não passava de um peso morto aplaudindo, sem saber ao certo o motivo, personagens que a legavam ao esquecimento. Tinha algo de triste e um tanto de trágico em sua condição, de modo que o melhor foi simplesmente esquecer de viver e de atuar.
O trabalho do ator é o trabalho do tempo, das lembranças que impregnam o palco com a beleza do ofício do teatro. Não há arte sem memória, como a vida também prescinde dessa joia preciosa que se esvai pouco a pouco de nossa mente através do tempo. Demoramos anos para conseguir domá-la, transformando-a em ferramenta de trabalho e método de atuação, mas esquecemo-nos, ora por descuido, ora por desleixo, que a memória passa tão rápido quanto o tempo que a carrega no seu lombo magro.
Preservar a cultura, a arte dos palcos, é preservar a memória, mesmo que ela escape pelos poros dessa brava gente do teatro, como fez com Ana. É preciso lembrá-los de que estamos aqui. Aos artistas esquecidos como ela, que por obra do acaso ou por maldade divina se encontram hoje impossibilitados de exercer o seu ofício, oferecemos ao menos uma gota de lembrança, e nessa gota carregamos um oceano de histórias vividas junto à certeza de que por mais que a doença ou o tempo atentem, eles nunca serão esquecidos.
Se a memória é a causa e o efeito de toda obra teatral, é através dela que preservamos aqueles que tombaram no front e os levamos conosco, com a certeza de que nem tudo passa nessa vida. Ana, por exemplo, fica; mesmo que a contragosto. Mesmo que a única lembrança que nos reste seja o arrastar de suas sandálias de couro cravejada de pedras falsas.