Foi no início do ano que tudo começou. Não tão no início pra ser preciso. As festas já haviam derretido no horizonte, é bem verdade, e o sol do novo ano trouxe consigo uma realidade luminosa que surgiu de repente, feito um punho fechado na cara. O ano vinha quente em todos os sentidos. O carnaval também já tinha morrido, batido com as cem, e o que restava da folia era o cheiro de pecado e saudade que subia do asfalto naqueles dias de calor e tempestade.
Antonio encarava o próprio reflexo no espelho quando se deu conta do acontecido. Até hoje ele não consegue precisar exatamente o que foi que mudou. Onde começava ou terminava aquilo que lhe engatinhava pela espinha e arrepiava tudo que é pelo do corpo? Não sabia. O fato é que Antônio estava impregnado dos pés à cabeça por aquele troço, sem saber o motivo ou o antídoto para aquela situação. A única certeza que tinha era a de que a coisa lhe comia por dentro, lhe mastigava por inteiro, lhe roía até o osso.
Antônio ainda estava perplexo diante do espelho quando uma rajada de vento entrou de repente, fez folia em seus cabelos, enguiçou sua vitrola e abriu a janela da sala. Antônio parou por um instante. Foi até a vitrola. Correu a agulha pelo trilho de vinil: New York, Fall 74. N-WH-70. Do aparelho para o parapeito foi um pulo. Ali, Antônio, antes de fechar a janela, percebeu o astro rei rasgando o equador celestial em direção ao norte; era o equinócio. Foi no mês de Março.
Encantamento. “Só pode ser encantamento. E daqueles de alfinete”. Antônio recitava diariamente para si a mesma ladainha travestida de certeza. Coitado. A magia, se é que ainda existe hoje em dia, não poderia dar conta do que acontecia com o ator recém-contratado, jóia da companhia, que acabara de se mudar para a capital do estado com a esperança de brilhar no circuito off-off-off daquela terra. Tonho, como é chamado a contragosto até hoje pela mãe, que sonhava em se tornar um outsider conhecido, acabou, vejam só, tornando-se um ilustre desconhecido até para si mesmo.
Não era ele, Antônio Rodrigues Machado, aquele cara no espelho. Não era, por mais que parecesse. Não mesmo. E mesmo que fosse não havia de ser. “Não é e pronto”, dizia o rapaz enquanto procurava a si próprio no álbum em branco das fotografias nunca tiradas. No teatro era diferente, tudo parecia normal. No teatro ninguém percebia nada. Por mais incrível que possa parecer, do teatro pra dentro nada mudou. Era como um milagre: bastava colocar os pés na coxia para o ator sentir que o mundo lá fora havia desabado. Restava apenas ele, sempre ele. Firme, de pé, pronto a entrar em cena para representar os seus próprios escombros, os escombros do mundo. O ator e seu ofício de magia, hoje, sempre e acima de tudo.
Era a época d’Os Tarahumaras, era o espetáculo de Antonin Artaud, xamã das ribaltas e besta-fera das casas de manicômios. Era também Antônio, cortado ao meio por uma janela, pregado na parede pelo acaso. Eram os cacos de seu subconsciente de vidro jogados no chão. Era encantamento, hipnose coletiva; era magia. Porém, havia um problema. Um erro de cálculo, uma confusão. Tonho, tadinho, não contava com aquilo. Eram novos tempos. Tempos vazios, sem imaginação. Era tempo de razão.
O que Antônio não sacava era que naquele tempo, como hoje, com exceção de algumas crianças, ninguém mais acreditava nos mágicos. Antônio nem desconfiava, mas a ciência, a religião e os especialistas vinham, há tempos, comendo pelas beiradas e explicando tudo, e o faziam sempre. Era batata. Não havia mais margem para interpretações ou devaneios. Era tudo assim como é: ipsis litteris. Era uma época sem graça pra se perder o juízo, pobre Tonico.
Quase setenta anos haviam se passado desde que o autor de Os Tarahumaras foi encontrado morto com um sapato nas mãos e uma sociedade entalada na garganta. Ao lado dele, um cachimbo sujo de lembranças e desespero. Ali, do lado de fora do espelho, Antônio vivia a mesma angústia do poeta francês. Era ele também, Tonho, um homem cujo ofício, o mesmo do dito cujo, havia ultrapassado os limites do bom senso e o empurrado à loucura. Mesmo crime, mesma sentença.
Como Artaud, fantasma que o consumia e que ele assumia no palco, Antônio também maldizia o invisível mal que lhe devorava. Chegou a pensar numa doença real, mesmo que o matasse. Chegou ao absurdo ponto de desejar a morte súbita, o suicídio e até mesmo o câncer. Seria mais fácil de explicar a todos algo do tipo do que dizer em alto e bom tom que havia pirado, perdido um parafuso, que estava enlouquecido e isso era tudo. Não, não era tão simples. Nunca foi assim simples. Nunca será. Infelizmente.
Sem poder viver ou morrer, sem nem mesmo poder desejar viver ou morrer, Antônio percebeu que carregava nas costas a tragédia cotidiana de todo homem. Com seu espírito e sua cabeça na luz da evidência, percebeu que não só ele, como o mundo todo, vivia com a imaginação estupefata. O desejo havia parado na beira da estrada. O sonho estava com os dois pés no freio. A vida sempre fora estagnada do lado de fora do espelho. E então Antônio percebeu que mudar era preciso, e que não estava, como ainda não está, garantido às leis e aos costumes, e àqueles que falam em seu nome, o direito de medir o espírito de quem quer que seja.
Nesse instante, Tonho sorriu um riso franco e se lembrou do teatro, do caminho até o camarim. E percorreu mentalmente os corredores até a coxia. E sentiu o cheio daquilo tudo novamente. E então teve a certeza: o teatro lhe ensinou uma nova maneira de ser, um jeito novo de viver e se manter no meio do mundo através de outros olhos. Aquilo tudo que ele acreditava ser loucura era a labuta do ator lhe batendo no peito. Eram tremeliques e arrepios, era a vida que voltava a correr no seu sangue disfarçada de desvairismo. Era isso e apenas isso, graças aos deuses todos.
O teatro lhe ensinou uma nova maneira de ser, um jeito novo de viver e se manter no meio do mundo através de outros olhos.
O inquieto Antônio estava livre. Como estão livres, mesmo que não percebem, os inquietos atores do globo. Libertou-se de suas correntes através do surto, do absurdo. Movido pela fúria dos olhos de Artaud, carregando nos braços uma coroa de anarquista, Tonho se rebelou contra a vida sem graça de fora do espelho e mergulhou pra dentro de si mesmo. “À merda com toda a excelência da ditadura social”, gritava Tonico enquanto estraçalhava a louça da casa, única herança da família, contra o espelho que lhe acorrentava à realidade. No fundo daquele espaço vazio, um francês gargalhava, ria, tocava marimba com os nervos do ator. Era tempo de loucura. Era vento avoando pelo espaço.
Uma súbita rajada peitou a madeira da porta da sala, que se abriu delicadamente feito fosse um terceiro olho submisso às carícia do acido lisérgico. A razão de Antônio, naquele momento, estava como Napoleão diante de Waterloo. O rapaz ganhou a rua. Partiu com o vento, sem destino, sentindo no cangote o cheiro de ópio e de saudade que exala do fantasma francês que gargalhava ao seu lado. Sem perceber estava ali: de pé, diante do teatro. Sem perceber estava livre, mesmo que tivesse pirado de vez. Mesmo que dali pra frente não fosse mais nada a não ser ator. Desde que se transformasse naquilo que sempre sonhou estava tudo certo. Era ele ali: o homem teatro. Antônio parou um instante. Tirou os sapatos. De pés no chão e sapato em mãos seguiu adiante, mirando o breu daquele templo ao qual se entregava numa espécie de sacrifício humano voluntário.
Antônio, o Tonho, o Tonico da treze, sumiu na escuridão de sua própria história. Naquela noite, por algum motivo, ele não entrou em cena. Não que não estivesse no palco. Não que tenha faltado, não foi isso. Foi diferente, foi mágico. Mesmo hoje é difícil explicar o ocorrido. Ainda hoje apenas algumas poucas crianças acreditam nos mágicos, por isso a historia de Antônio foi encarcerada pelos homens de bem que se concedem o direito de sacramentar a insensatez de homens que desconhecem.
Não houve lei ou capataz capaz de prender ou assassinar todos os homens que pensam e agem de maneira diferente da maioria. Felizmente, nunca haverá. Por mais que se suprima a magia, por mais que tentem nos fazer engolir fórmulas e explicações, nós nunca seremos vencidos pela superioridade da força, nunca. E é isso, e apenas isso, que eles possuem: a força. Quanto a nós, se tudo ruir, ainda nos manteremos atuantes, inquietos, seguindo uma voz que gargalha dentro do nosso peito e sentencia que a tragédia no palco não basta, é preciso reinventar a vida.