Há pouco escrevi por aqui sobre a companhia Corpo Santo. À época, fui visitá-los para um bate papo descontraído regado à cerveja e devaneios, onde nos deliciamos com um menu teatral digno de apreciação calma e delicada. Passamos uma bela tarde entre memórias e desejos. Cavoucamos a história desse grupo que há dez anos atua na cidade de Campinas, mas que tem o coração internacionalista e o sonho de um teatro universal. Ao fim daquele encontro, nos abraçamos com a certeza de que o mundo seria pouco para o almejo daqueles homens e mulheres de teatro que fazem questão de fazer da própria miséria, condição eterna de todo artista, uma forma de devoção. Saí daquele espaço divino, o Cis Guanabara, comandado pela Unicamp, com a certeza de que fazia parte da história, e a promessa de que acompanharia de perto a obra que ali se anunciava: o espetáculo comemorativo da Bodas de Zinco da companhia.
Como promessa além de dívida é exercício, cá estou para, novamente, guiá-los pelos encantos dessa festiva peça que se propõe tão gigante quanto a própria história do grupo, ainda mais depois de vivenciar essa década de paixão condensada em duas horas de poesia e ousadia. O convite para conferir a pré-estréia de Tão Logo – Uma Peça de Teatro para Finais de Tarde veio como tudo o que vem da companhia: na base do afeto e inundada de desejos. A coisa se deu no fim da tarde de sábado, 15/10, no Cis Guanabara, espaço que se confunde com a história recente da trupe. Como a encenação era reservada à imprensa, combinamos que não rolaria absolutamente nada de papo antes do terceiro sinal, a saudade que nutríamos de nossas conversas só seria saciada ao fim do espetáculo.
Pelo espaço diversas personagens transitavam, quietas e obscuras diante de todo o mistério que pairava sobre o ar. A beleza da estrutura metálica, restaurada por uma horda de decoradores há alguns anos, contrastava com as ruínas da história da antiga Estação Mogiana. Burburinhos. Uma pequena confusão parecia tramar contra os planos traçados para aquela tarde. Tensão. Medo. Delírio reprimido em forma de apreensão. O impaciente público parecia aguardar qualquer coisa diante da caótica notícia: hoje faremos o teatro como for possível, nos perdoem. O terceiro sinal é substituído pelos sorrisos que anunciam o início da viagem. Todos a bordo do expresso da memória!
Tão Logo – Uma Peça de Teatro para Finais de Tarde é uma peça marcada pela ousadia e pela paixão, mas não podemos negar que o tom da nostalgia e da reafirmação de valores, junto à analise humorada de erros e acertos, é o princípio de tudo. O mote parece simples: os integrantes da companhia encontram-se para o aniversário do dramaturgo e diretor Douglas, depois de uma década afastados por conta da própria vida, que tem a solidão enquanto método de opressão e vigilância.
Tão Logo é uma peça marcada pela ousadia e pela paixão, mas não podemos negar que o tom da nostalgia e da reafirmação de valores, junto à analise humorada de erros e acertos, é o princípio de tudo.
Onde nos encontrávamos há dez anos atrás? Essa é uma pergunta que exige, além de uma memória preservada, um instante de contemplação diante da existência que se desenrolou por esse período. Para respondê-la é preciso antes de tudo estar disposto a revisitar os fantasmas que encarceramos no peito, com a ilusão de que Chronos cura os males que deixamos de enfrentar. Estaríamos nós acorrentados àquele destino que se principiava no horizonte, ou fomos capazes de transformar a nossa história em obra enquanto enfrentávamos a rotina?
Difícil saber, ainda mais quando tal análise se dá através de personagens e lembranças cênicas, e não do dia a dia que adubamos com a esperança que pouco a pouco nos escapa entre os dedos, feito os dias que insistem em trafegar em alta rotação. Um a um, os integrantes surgem para a comemoração carregando com eles seus demônios mais perversos e obscenos.
A obsessão, nosso jardim particular regado com obstinação como definiu Nelson Rodrigues, desfila pelo palco travestida de paranoia e dor, enquanto assistimos tencionados a um reencontro que tem seus motivos para ter sido evitado o quanto fosse necessário. O teatro faz-se presente em seu estado mais radical: o vício. Todos ali encontram no palco a válvula de escape para um mundo mesquinho, que nos dilacera entre obrigações e descrença, feito uma folha em branco que insiste em não se render à tinta que atenta contra o sulfite.
Seria absurdo, ainda mais nessa nova onda que condena os spoilers, tentar contar algo mais do que o que já foi dito acima. A peça guarda, além de segredos, surpresas deliciosas, dessas que nos tomam de assalto ao primeiro piscar de olhos, por isso, é preciso deixar claro que o intuito dessas linhas é, acima de tudo, preservar o mistério.
A Corpo Santo é uma dessas companhias que tornam-se imprescindíveis pela insistência e pelo legado que construiu, na base da porrada e do amor. Sem leis de incentivo, sem grandes apoios ou parceiros, a trupe produz de maneira hercúlea um repertório digno dos grupos mais importantes do país atualmente.
Com uma dedicação corporal invejável e uma juventude que não transparece a década de experiência e teimosia, a Corpo Santo se reinventa a cada espetáculo com a obsessão de transformar a vida em palco, nos escombros de nossa civilização deformada pelo olhar turvo e insensível.
Se os atores demonstram total controle das técnicas teatrais, é preciso também compreender que essa técnica está aliada à devoção, e isso faz de cada peça uma experiência única, pautada pela imprevisibilidade e pelo delírio. Com a Corpo no palco tudo é possível, até mesmo revisitar uma história que continua pulsante como o corpo dos atores que carregam em cada músculo um teatro feito de sonhos. A direção precisa e a dramaturgia bem amarrada deixam claro que Douglas Chaves é um dos encenadores mais inquietos e necessários de seu tempo.
Nesses tempos obscuros, onde a única certeza que podemos carregar é o desespero, a afirmação da Corpo Santo serve de norte para que possamos seguir adiante: pouco importa o que construímos em dez anos, o que realmente interessa é o que faremos de nós na próxima década.
Por isso, ainda maravilhado por tudo que vivi no sábado passado, eu vos convoco a construirmos, lado a lado, os alicerces de nossa próxima primavera que há de florir os próximos dez anos que nos aguardam.
Que sejamos capaz de semear a próxima década de nossa nação com a mesma paixão que a Corpo Santo floresce nos palcos da vida.
Feliz aniversário, queridos!
SERVIÇO | “Tão Logo – Uma Peça de Teatro para Finais de Tarde”
Quem: Cia Corpo Santo;
Onde: CIS Guanabara – Rua Mário Siqueira, 829 – Botafogo – Campinas;
Lotação: 40 lugares;
Quando: 12, 13, 19 e 20 de novembro, às 18h;
Quanto: Público decide quanto pagará pelo espetáculo;
Informações pelo e-mail: ciacorposanto@gmail.com.