Mangue. Recife-Rio. Caranguejo Overdrive – uma cartografia, uma peça performática, uma peça musical: os limites, dissolvidos. Mangue. A simultaneidade, o entrecruzamento, a sobreposição – como é possível re-contar uma história de geografia exata, mas que vaza e chega aqui: na abrangência (realidade, talvez)? Atualidade cortante, uma dose de brutalidade, que é para ninguém ter dúvida da grandeza. Confinados em uma gaiola, eles, ali, enormes. Um espaço pequeno para tão grandes efeitos. O exercício artístico, aqui, é trabalho contínuo, preciso. Um olhar atento para o fato de que história é hoje, ficção também. “Caranguejo Overdrive não é uma peça-documentário, mas, sim, uma obra que se utiliza de uma base documental para compor a ficção que atualiza nossa reflexão sobre o Rio de Janeiro de hoje.”
“Um texto insuficiente, dada a polifonia”, diz Pedro Kosovski, o dramaturgo, depois da apresentação. É porque a completude está em outro lugar. Em outros lugares. Uma obra porosa, cujos agentes, sem pudor, abrem buracos. Invadem. Se exaurem, mas não se eximem. A radicalidade presente em tudo. Cruzar corpo humano com caranguejo, cruzar Manguebeat com 2016, ator-perfomer-pessoa-interprete-músico. Caixa de areia, quadro explicativo. Músculo e luz. Lama e pele. Geografias variadas: o corpo, um mapa aberto. A cidade, um campo de batalha. Caranguejo que é homem, trabalho, sinônimo para sobrevivência. Conflito: segregação.
Uma narrativa que se constitui enquanto várias outras. Um nó do qual fazem parte a Guerra do Paraguai, a urbanização da cidade do Rio de Janeiro, a história política brasileira, a vida, essa, miserável e banal, de carne e osso, e tantas outras coisas. É uma denúncia o trabalho. Uma obra que parece dar conta de fechar algumas frestas que permaneciam abertas, mas, ao mesmo tempo, uma obra que se empenha em deixar ainda mais escancarados os buracos. Fraturas expostas – como quando a estrangeira assume a narração: é constrangedor fazer parte de uma história continuamente racista, violenta, autoritária. Alheia a vida de milhões. Um Estado brasileiro vergonhoso. Aqui: um lugar de constatação, a obra de arte. Abertura de um mundo, convite, força bruta, crueza. Temporalidades várias em um teatro que faz lembrar que a guerra é trauma, fissura, contínua – estamos em guerra. Una vez más.
É uma denúncia o trabalho. Uma obra que parece dar conta de fechar algumas frestas que permaneciam abertas, mas, ao mesmo tempo, uma obra que se empenha em deixar ainda mais escancarados os buracos.
O teatro re-pensado. Uma peça-pobre, riquíssima. O lado B, a grata surpresa. Poucos lugares. O discurso do subterrâneo – “adorei os meninos do Caranguejo”, disse Maria Alice Vergueiro, a senhora que encena a própria morte, também nesse Festival. E há, de fato, a união entre esses universos marginais que direcionam a luz para o breu. Iluminar o esquecido, o evitado. Se saber dono de uma voz que contém várias outras. Voltar a origem e se descobrir alheio. Falar em nome de, falar com o nome de, falar meu nome. É um questionário a existência. A liberdade, como se faz para tocar nisso? O teatro, aqui: infinitas pistas.
SERVIÇO | Caranguejo Overdrive
Quem: Aquela Cia.;
Onde: Casa Hoffmann | Rua Claudino dos Santos, 58;
Quando: 30 de março, quarta, às 18h e 21h;
Quanto: R$70 e R$35 (meia) + taxas.