Colaboraram Alejandro Mercado e Maura Martins.
“Nosso amor é mais gostoso, nossa saudade dura mais, nosso abraço mais apertado, nós não usa as ‘bleque-tais’.”
Gianfrancesco Guarnieri em Eles Não Usam Black-tie.
O texto de Marcia Zanelato, Eles não usam tênis naique, apresentado no Festival de Curitiba pela Cia. Marginal, faz clara relação com a obra de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie. Sutilezas metafóricas evidenciam o aprofundamento desta relação.
Se no texto de Guarnieri, o autor trabalha a dramaturgia mediante as relações entre uma família operária e os conflitos entre pai e filho, em Eles não usam tênis naique, Zanelatto desenvolve a trama a partir da relação entre pai e filha; ambos os textos são ambientados na favela carioca (ainda que na adaptação cinematográfica do texto de Guarnieri tenha ocorrido migração para a periferia do ABC paulista); ambos utilizam a geografia para discutir pertencimento, presente, passado e futuro.
No texto de Guarnieri, Tião, o pai, as dúvidas, angústias e medos do personagem se evidenciam em suas falas, sua forma de acreditar que correr atrás de seus direitos é o que move sua vida, seus conflitos com Otávio, o filho. Já Santo, o pai no texto de Zanelatto, também vive angustiado. Sua angústia se revela na instância de sua experiência de vida dura em contraponto com as “ideologias” de sua filha, Roseli. Por um lado, a culpa de não tê-la criado, de ter “caído fora” numa tentativa de preservar sua família; por outro, a responsabilidade em tentar convencê-la a resistir à sedução do mundo do crime, a manter um certo encantamento por um mundo repleto de derrotas e cinismo.
Para não haver dúvidas sobre a dualidade humana (e, quiçá, da moral), os atores se alternam entre as duas personagens, pai e filha, num jogo cênico que enriquece o texto (e não confunde o espectador, mas exige bastante atenção). Santo e Roseli habitam em cada um dos quatro atores, e o enfrentamento se expressa também pelo cenário e pela simbólica “dança das cadeiras”, no qual, no fim das contas, todos buscam, instintivamente, um espaço de permanência, reconhecimento e estabilidade.

Para não haver dúvidas sobre a dualidade humana (e, quiçá, da moral), os atores se alternam entre as personagens, num jogo cênico que enriquece o texto.
Guarnieri dizia que seu texto era “uma visão romântica do mundo”, através da qual “os problemas surgem, estourando os conflitos”. Talvez seja possível dizer que, em alguma medida, havia um excesso de idealismo, tal como em Eles não usam tênis naique, que por vezes pesa a mão em ser panfletário.
Mas nem isso tira o mérito da peça, que ainda utiliza as eventuais quebras da quarta parede para trazer à tona a proximidade entre ficção e realidade, uma verossimilhança atemporal, seja no 1958 de Guarnieri ou no 2016 de Zanelatto. E nesse sentido, as falas dos atores da Cia. Marginal, ao se despirem dos personagens, acabam por potencializar o caráter realista do texto. Agrega-se a isso a crueza das performances dos ótimos atores e a tensão permanente no ar, garantida, em partes, pela percussão presente em cena pelas mãos do músico Rodrigo Souza. Certamente, um dos espetáculos essenciais desta edição do Festival de Curitiba.
SERVIÇO | Eles não usam tênis naique
Quem: Cia. Marginal;
Onde: Sesc da Esquina | Rua Visconde do Rio Branco, 969;
Quando: 27 de março, domingo, às 19h;
Quanto: R$70 e R$35 (meia) + taxas.