É possível a um único homem a compreensão total de seu próprio tempo? A exata noção de tudo o que se passa ao seu redor? A real dimensão dos obscenos e desumanos artifícios com os quais o poder, e os malditos poderosos, entornam a vida alheia goela abaixo? Evidente que não! A todo homem, a todo humano, há em seu próprio tempo um vale de sombras particular. Cantos desconhecidos, incompreensíveis, obscuros (!!), mas que aos olhos de outros parecem tão claros como a névoa branca de uma manhã gelada.
A escuridão muitas vezes reside na retina, e não na paisagem. Apesar do medo, sabemos exatamente o caminho desses vales. Tateamos com freqüência seus limites. Esperamos ansiosamente por um lampejo de coragem ou um descuido da razão que nos permita molhar os pés, de maneira impensada e aventureira, naquele “néctar” negro proibido. Poucas vezes o fazemos. Com o passar do tempo, adquirimos uma espécie de adoração pela segurança, seja ela psíquica, financeira ou espiritual, e por conta disso andamos com os pés cada vez mais secos e as almas cada vez mais empoeiradas. Não é difícil perceber que todo tempo é confuso de alguma forma. Todo tempo é um tempo meio morto, parado no próprio tempo e perdido no espaço de seu próprio descompasso. Em todo tempo, a dúvida paira no ar e alguns caminhos parecem levar a lugar nenhum. Sempre!
Certas ocasiões, e não seria exagero dizer certos tempos, tem por princípio, ou capricho, a recusa de ídolos. A figura de um herói agoniza no fundo de nossa memória e percebemos que tempos difíceis, como esses que assistimos, são enfrentados de mãos dadas, coletivamente, e que é melhor ter ao lado um irmão para lhe sorrir e abraçar quando o murro seco de poeira da bomba inimiga nos gela o peito do que agüentar o baque sozinho.
Cada desenho de cena, cada passo dado num palco, cada assento tomado na platéia depende de uma série de pessoas que participam do processo de diferentes maneiras.
Se máxima popular diz que uma só andorinha não faz verão (um viva aos clichês!), nós dizemos que uma única voz, solitária, não tem a capacidade de rasgar as mordaças cotidianas que nos impedem de gritar. Uma voz solitária só faz lamentar. No entanto, juntos, uníssonos, nós podemos rasgar o tempo, as gargantas e as mordaças que nos impedem de cantar até o amanhecer.
E onde estão as outras vozes? Aquelas que nos ajudam a enfrentar, e compreender, os nossos próprios vales escuros. Donde? Aquelas que nos servem de guia quando os olhos já não conseguem nos orientar diante do breu. Quede? Aquelas que embalam noites insones quando o desespero já nos rendeu por todos os lados. Esse som salvador existe? Sim, elas estão por aí, soltas no vento, numa silenciosa batalha particular para se tornarem berro, no entanto, não se berra sozinho em tempos onde o silêncio é conquistado com sangue. Por conta disso, é imprescindível que saibamos ouvir o som, e as vozes, do nosso próprio tempo na tentativa de compreendê-lo e de unirmos forças para transformarmos o globo na base do gogó. O segredo? O outro.
No teatro também dependemos do outro. Dependemos para conquistar o nosso objetivo. Dependemos para dar vida a esse ofício. Cada desenho de cena, cada passo dado num palco, cada assento tomado na platéia depende de uma série de pessoas que participam do processo de diferentes maneiras. De cara, quando pensamos nas artes cênicas, nos vem logo à cabeça a figura do artista, dono absoluto do pedaço, mas a verdade é que cada pessoa envolvida no processo compreende e “contracena” com o teatro à sua maneira, e por isso mesmo tem as próprias impressões a respeito dessa arte.
A toda voz que se arrisca no tremor das cordas do grito falta apenas um espaço, por isso, na ânsia de desvendar esse mundo que nos esmaga, e como o teatro é o início e o fim de tudo que está em cena, a coluna passará, a partir de abril, a ceder espaço para outras vozes ecoarem por ruidoso espaço. Como? Através de entrevistas que irão compor uma nova série intitulada: Confabulações.
A ideia é simples: um papo descontraído, regado a cafés, cigarros e o que mais pintar, onde o teatro nos guiará pelo nosso tempo não na tentativa de entendê-lo, quem nos dera, mas sim de fazer parte desse próprio tempo como seres atuantes que se propõe ao exercício de seu desbravamento. Venha! Feito fosse possível pularmos juntos nessa água forte sem nenhuma certeza, mas com a vontade de virarmos correntezas e percorrermos os rincões dos sonhos, das imaginações e das possibilidades nesse tempo fosco e sem cor.
Depois de dois anos de solilóquios é chegada hora de, ao menos uma vez por mês, aquele que escreve por aqui se deixar levar pelas palavras de outras vozes tão ou mais importantes que a sua. Juntos, aos berros, numa confabulação cósmica contra tudo e todos, poderemos mais. Afinal, amores, revoluções e batalhas são mais interessantes quando feitos, e conquistados, de mãos dadas e almas entrelaçadas.