Um espaço – algum espaço. Uma multidão: “uma força de trabalho cada vez mais imaterial, intelectual, genericamente definida como produção comunicativa”¹. A beleza do teatro, alguns dizem, é ser capaz de criar ambientes de ficção. Os limites da ficção, no entanto, intercambiáveis e subvertidos, às vezes, fazem com que essa específica noção de beleza se perca na ausência de uma narrativa ficcional.
O efeito de corpos, por exemplo, juntos, o suor, a sonoridade e a nudez – que beleza é essa, então, dada a crueza? Por que a dificuldade em permanecer, em me deixarem ficar estático, em um canto? Por que a falta de imunidade? Que força coercitiva é essa, que impede uma inércia, desejada e requerida?
É fácil a criação de uma massa de manobra, eu penso. Alguns minutos que alguém promova Batucada é suficiente para produzir o desconforto quando vem o silêncio, ainda que fosse esperado. É impossível, para a maioria, permanecer quieta. Será a instrução? Será a coerção? Será reação ao absurdo que é o silêncio, em uma peça, uma performance, um evento cênico, uma coisa: artistas reunidos? Que autorização essa gente tem para parar? Não eram eles, até agorinha, que promoviam ruídos sincronizados?
É uma balada, é o front, é a sacada da cobertura do bairro nobre, é o morro. É metáfora: espaço de criação.
Parece o mundo, sim – e as pessoas que o habitam. Elas estão encapuzadas, de modo que o anonimato seja colocado à prova: não são anônimas, são encapuzadas essas pessoas. E batem, incessantemente, em suas panelas, em suas tampas de panelas, chaleiras, formas e, também, uma bandeja. Servidos de uma total inadequação, o público. Sem destino e sem indicações. Corações flutuando e ninguém para dizer coisa alguma. Palavra, o que é isso? Comunicação, como se faz?
O público, pobre, faz cara de quem desconfia para onde vai. Ele dança ao som de um som que parece propício a dança – ai! mas no segundo seguinte, ele se acanha frente a uma imagem que faz lembrar guerreiros. É uma balada, é o front, é a sacada da cobertura do bairro nobre, é o morro. É metáfora: espaço de criação. É impossível não inserir nos espaços vazios essas nossas últimas semanas. Na Cult desse mês, Márcia Tiburi escreve sobre “Direitos Estéticos”² e fala sobre os padrões, esses, construídos em cima de delírios, não por acaso, colonialistas. Quem bate panela, então? Que corpo é esse? O que pensa dos outros corpos? Ao que ela responde: “O corpo é o limite – não apenas o suporte – a partir do qual a linguagem e o poder podem instaurar-se”. Por isso o empurrão, por isso a oposição.
Linguagem e poder – essas coisas que, a todo o momento, criamos acordos para deixar que existam (para fazer com que possamos entender as existências). “Nenhum direito estético será alcançado sem luta e sem resistências que são, elas mesmas, estéticas”. O batuque de corpos, vários, diferentes entre si, de perto, de longe, o mesmo. “O mais básico de todos os direitos, aquele que garante a presença, o direito a estar, o direito de ser quem se é”.
As manifestações, outra vez, as manifestações – “o espaço e o tempo privilegiado da produção política e estética da multidão, da oposição biopolítica ao biopoder, lá mesmo onde este concentrou seu ataque, ou seja, nos corpos particulares, mas, sobretudo, na forma comum da vida, a carne”. A carne: “as manifestações carnais são recusa da representação transcendente e demanda da cooperação imanente” – isso talvez explique a necessidade de uma potência estética para além da representação do poder. Que carne é essa, em tempos desterritorializados, em tempos virtuais?
Quem são os agentes aqui, agora? Qual é o meu lugar, o meu discurso? Aquele grupo, que se movimentava certeiro, fazendo com que o espectador se sentisse absolutamente perdido (ainda que fingisse a malemolência), agora está no chão. Corpos nus no chão de pedra do Largo da Ordem. São corpos que dificultam o meu deslocamento no espaço público. Eles podem ser pisados, eu sei. Ou desviados, mais uma vez.
¹SZANIECKI, Barbara. Estética da multidão. Rio de Janeiro: Civilização, 2007.
² TIBURI, Marcia. Direitos Estéticos. Revista Cult, Ano 19, nº 2010, Março de 2016.