A dificuldade em arrumar a própria vida é algo que une todos os seres humanos. Impossível não sentir um arrepio agudo vindo da espinha quando precisamos encarar sem véus ou fantasias a nossa própria desordem, afinal, somos prisioneiros de um mundo caótico e incompreensível que atira a baderna de seus desmoronantes governantes em nossa própria existência. Essa vida ruidosa e sem sentido não passa do reflexo de uma época estraçalhada. Cada pessoa tem a própria maneira de lidar com a aflição. Muitos abraçam o desespero e vivem governados pelo medo. Alguns, com sede de mudança, traçam planos impossíveis, dignos de causar inveja a qualquer bandido de desenhos infantis.
Eu, que por comodismo ou desleixo ando inimigo de rupturas bruscas comigo mesmo, acabo sempre me entregando à poeira. Explico-me: na tentativa de arrumar meus próprios caminhos, ao invés de avançar o sinal da razão e me entregar de vez ao delírio, tento sempre organizar as miudezas que acabam escondidas no fundo do armário na esperança de arrumar, ou aplacar, as tempestades que agitam a alma. Hoje, ao invés de mergulhar em copos e garrafas, aventuro-me pela selva de papelão daquelas caixas esquecidas no maleiro. Caixas velhas, impregnadas de sujeira e lembranças, que acabaram perdidas em nosso próprio tempo. E ali, jogada às traças, a nossa história tem enquanto única companhia a poeira do esquecimento.
Numa dessas recentes tormentas, a mão trêmula cavocava o breu em busca de paz quando se deparou com algo diferente. Não havia ali a lisura conhecida do papelão esquecido. Também não havia sinais de fitas ou de abas, características universais desses baús improvisados. A única coisa conhecida, e que garantia uma espécie de conforto diante do desconhecido, era a sua velha amiga: a poeira.
Vacilante, a mão enroscou-se no desconhecido e puxou, feito peixe grande, um pequeno tesouro. Ali, à luz fria do apartamento, o mistério dissolvera-se: era uma pasta! Uma pasta simples, transparente, com os elásticos frouxos e uma etiqueta amarelada onde lia-se a palavra em caixa alta: TEATRO. O peito repicava diante da descoberta e, num ato impensado, a trêmula, e agora suada, mão afundou-se na papelada. Eram programas. Programas de peças aos montes, divididos por datas e maltratados pela umidade. Ali, escavando as próprias memórias corroídas pelos excessos, as mãos folheavam a história e se confundiam com a o pó que se espalhava pela sala. A luz do sol, que dispensa convites, entrava pela janela e iluminava o balé dos ciscos pela casa.
Dos grandes espetáculos até as mais modestas apresentações, dos indigestos caça-níqueis aos controversos experimentos cênicos; o programa está quase sempre presente nos lugares onde se principia uma peça de teatro.
Os programas cênicos são pequenos livretos, algumas vezes apenas uma ficha, que contém as informações básicas do espetáculo: sinopse, fotos, ficha técnica, agradecimentos e o que mais a produção achar necessário informar ao público. Dos grandes espetáculos até as mais modestas apresentações, dos indigestos caça-níqueis aos controversos experimentos cênicos; o programa está quase sempre presente nos lugares onde se principia uma peça de teatro. Alguns são tão bem detalhados e acabados que parecem mais livros prontos para comercialização. Outros, apesar de mais modestos, chamam a atenção pelo cuidado em relação aos textos e às informações sobre os autores, por exemplo.
Cada programa tem seu próprio reinado. Manifestos, declarações públicas de posicionamento político, convites ao “desvairismo”. Provocações, palavras de ordem, panfletos. Os programas não são apenas informativos descartáveis, fadados aos fundos gastos das calças ou ao amontoado de papéis que decoram o porta-luvas e o chão dos carros. Não! Basta correr os olhos por alguns deles para perceber que através da leitura de programas cênicos é possível conhecer a história do próprio teatro. Pequenas preciosidades que passaram despercebidas em certos períodos e tornaram-se, com o passar dos anos, verdadeiros tesouros. Programas são documentos que desvendam mistérios teatrais e devem ser tratados como tais.
Nos tempos atuais, onde a produção artística muitas vezes está submetida às migalhas e ao policiamento das tais leis de incentivo, discute-se muito a necessidade desses livretos. Muitos acreditam que por se tratar de dinheiro público advindo de impostos devidos à nação, e pagos pelo povo como gostam de gralhar os homens de bens que escondem sua sujeira debaixo do tapete persa, os gastos com as produções contempladas devem ser revistos e, numa dessas, produzir programas seria um exagero. Diante desses pobres homens devoradores de cifras, nós insistimos em defender que não existem cédulas capazes de computar o preço da história, por isso acreditamos que os programas são imprescindíveis e devem continuar pulando de mãos em mãos, documentando e exaltando as nossas obras que eles tentam, em vão, controlar e diminuir. Nossas mãos permanecerão livres e curiosas como nosso espírito!
Essas mãos, ainda trêmulas, repousavam exaustas, encardidas pela história. Erravam lentamente pelas trilhas dos papéis de seu tesouro empoeirado. O amarelado do tempo confundia-se à marca de nicotina que lhe adornavam os longos dedos manchados de tinta. Cuidadosamente, em perfeita acrobacia, ergueram o conteúdo da pasta e num leve assoprar jogaram pelo espaço a espessa camada que se amontoava diante do plástico já gasto e embranquecido. A história daqueles espetáculos misturou-se ao vento, e ficou guardada pra sempre na leve brisa que afaga a eternidade.