“Ser um homem útil sempre me pareceu algo bastante detestável.”
Charles Baudelaire
A primeira vista, o título desse pequeno texto pode parecer algo absurdo para figurar em uma coluna sobre teatro, e confesso que esse estranhamento, de certa maneira, também toma de assalto o autor dessas linhas. Em tempos descabidos, onde a lógica encontra-se oculta entre incertezas e estupidez, é preciso tomar partido diante do mundo. É preciso se posicionar com clareza, apesar do horizonte turvo que encontramos de fronte a face estarrecida. Mas, acima de tudo, é preciso pensar e compreender o mundo em que vivemos.
A arte, em suas diversas frentes, é essencial para entendermos o que se passa ao nosso redor. Por isso, é dever do artista se posicionar, além de violentar o status quo, como bem disse o cineasta Glauber Rocha. Tal entendimento nem sempre se dá através da análise de obras artísticas. Muitas vezes podemos nos guiar por essa “via de mãos múltiplas” através de detalhes que, a princípio, nos escapam à percepção.
O texto de hoje trata de um desses detalhes. É uma reflexão absolutamente pessoal sobre uma experiência vivida há pouco, no útero do mercado artístico brasileiro. Não sou um homem da idade das pedras. No entanto, algumas modas, e uso a palavra moda por falta de outra que venha à cabeça nesse momento, me causam engulhos. Vivo, e sempre vivi, crente na máxima de Oswald de Andrade, reconhecendo-me na idade da pedrada. E justamente por isso dou-me o direito de discutir nesse espaço impressões pessoais sobre o que quer que seja, sempre preocupado em criar um debate produtivo com os leitores.
Pois bem, sempre tive completa objeção a algumas comodidades, ou extravagâncias, surgidas recentemente em nossa sociedade. Mais do que as escolhas pessoais, irrita-me a capacidade do mercado em transformar uma singela estupidez em um grande negócio. Os exemplos são incontáveis, ainda mais em São Paulo que é, inegavelmente, a terra da oportunidade para novos empreendedores, por mais absurdas que pareçam suas ideias. Basta dizer que, por aqui, existem empresários fazendo fortunas com (pasmem!) festas de aniversário para cães em luxuosos salões. Não cabe a mim julgar aqueles que se dispõe ao ridículo papel de ciceronear animais de estimação em festas de debutantes, o exemplo serve apenas para ilustrar a complexidade do mundo em que vivemos.
Fazendo agora uma espécie de “mea culpa” em nome de meus colegas, é preciso dizer que essas extravagâncias não são exclusividades de uma elite adoradora de cães, pelo contrário, encontram-se cravadas em nossa rotina, inclusive no mundo das artes. Nesse sentido, quando me refiro às questões ligadas às artes, admito que sou tão ignorante quanto no caso das primaveras caninas. Sempre estive por fora dos grandes centros de encontros artísticos e suas pautas imprescindíveis, ora por mera impossibilidade, ora por teimosia ideológica.
Cabe ao artista, no mínimo, decidir o rumo a seguir nesse duelo invisível que travamos com a vida.
O famoso slogan punk (do it yourself) aliado ao estudo de grupos artísticos de almas anarquistas, por exemplo, me legaram a independência e a desconfiança em relação a muitos avanços na área cultural. Pago, conscientemente, um preço alto por essa escolha e sigo na luta sempre, apesar do desânimo que insiste em me assolar em noites insones. Seria desnecessário, para dizer o mínimo, divagar aqui sobre as inúmeras questões que me afligem no âmbito cultural. Por isso vou direto ao tema da coluna de hoje: o gerenciamento artístico.
A segunda chegou fria e indesejada, como toda segunda-feira, na cidade de São Paulo. Pelas ruas, ainda era possível sentir cheiro de enxofre. O rastro do odor do ódio a perfurmar o asfalto dessa confusa Paulicéia. Entre cartazes esquecidos e uma garoa fina que acinzentava ainda mais o espírito daquele dia, era possível enxergar que o Brasil acordará razoavelmente impassível diante da turbulência dos últimos acontecimentos.
Apesar da ressaca nacional causada por esse “levante cívico” que causa medo, eu vivia meu próprio calvário em direção a uma roubada na qual havia me enfiado. Com receio, e completamente a contra gosto, aceitei o convite de um amigo para participar de uma palestra, que se mostrou uma espécie de show, sobre o tema/tabu para este cético ator.
O gerenciamento artístico visa desenvolver a carreira do artista através de ações de marketing: divulgações, licenciamento digital, aconselhamento profissional e desenvolvimento de marcas e projetos para contratação. Assim começou a palestra/show, com ares de lançamento de produtos da Apple, no teatro. No telão apareciam ilustres desconhecidos que conheceram a felicidade e o amadurecimento artístico através de um contrato assinado com a produtora em questão.
O grande nicho, como adoram dizer esses bem intencionados jovens, são os artistas ligados à musica, no entanto, o teatro surge, segundo tais especialistas, como a nova aposta das empresas desse segmento devido ao intenso, e repentino, interesse de grupos e pessoas ligadas às artes cênicas. A coisa é complexa e se estendeu durante toda a manhã. Entre expressões impronunciáveis que encantavam a todos e uma pirotecnia digna da última turnê dos Stones, confesso que não entendi a grande diferença entre um “gestor de carreiras” e um agente, por exemplo.
Sai sem saber ao certo o que pensar sobre tudo o que havia visto naquela sala. É compreensível que nos dias atuais, diante desse histerismo do mercado de trabalho artístico com os profissionais ditos “generalistas” (outro termo que aprendi com os especialistas), exista a demanda desses profissionais em algumas situações. Por mais que me doa admiti-lo, entendo que alguns artistas abrem mão de sua única musa, a liberdade, para se lambuzarem com as regalias do sucesso. Mesmo que esse sucesso lhes custe a dignidade e o amor próprio. Tal constatação me fez sair daquele teatro com um aperto no peito e a certeza de que é difícil se encaixar em um mundo onde delegamos nossas escolhas a empresas especializadas.
É impossível negar que atualmente somos massacrados pela rotina e viramos reféns do deslizar de um ponteiro que está atravessado em nossa garganta. O simples fato de existir já nos causa calafrios angustiantes. Cabe ao artista, no mínimo, decidir o rumo a seguir nesse duelo invisível que trava com a vida. Enquanto não nos posicionarmos diante das questões que nos dilaceram, continuaremos reféns. Talvez, como disse certa vez o visionário Baudelaire, estejamos vivendo dias em que o ato mais revolucionário seja, simplesmente, não ser útil ao que quer que seja. Isso vale para o patrulhamento político, vindo de todos os lados, ou para um publicitário oportunista criado no útero de um mercado que renega não só o homem, como também o próprio teatro. A inutilidade, em um cenário tomado por idiotas úteis, é uma forma de rebelião das mais poderosas, visto que os homens úteis agem atualmente em defesa de bandeiras lamentáveis e perigosas. Ainda é preciso esclarecer que essa inutilidade nada tem de indiferença ou isenção, o muro, camaradas, ainda é o poleiro dos covardes!
Entre a certeza do sucesso na foice cega do artesão do capital e a miséria da resistência sectária que insiste em compreender só o mundo que defende, fico com o poeta francês e sua detestável certeza. Alimento-me da crença em um amanhã que há de raiar e nos libertar da escuridão desses dias indecifráveis. Sigo trilhando os caminhos de acordo com a minha própria vontade, não me submetendo ao chicote dos patrulheiros amordaçados que assassinam sonhos e ergo o braço, em riste, em defesa da liberdade que corre um risco tremendo em terras devastadas pela cegueira proveniente de um ódio confeccionado no ventre de um monstro extremista, violento, burro e ruidoso.
Que ao invés de terceirizarmos a gestão de nossa própria desgraça, aprendamos a governar nossos desejos em busca de águas mais tranquilas nesse mar de gente que teima em não nos deixar em paz.