Tão logo a Ministra Carmem Lucia anunciara o adiamento das ADPFs 183 e 293, ações que tratam sobre a obrigatoriedade do registro profissional de artista, e a quantidade e intensidade das discussões a respeito do tema caíram pela metade. Logo depois do anúncio, a presidente do STF soltava mais uma bomba aos interessados: o adiamento era por tempo indeterminado. Sim, o STF não só adiou o troço como também tirou as ações da agenda. Fogos! Rojões! Gritos de libertação! Textões de comemorações e agradecimentos, é claro. Vencemos! Vencemos mesmo?
Alguns artistas comemoraram a “conquista” e exaltaram o acerto da ministra. Talvez se esqueçam os colegas de que mesmo depois das doze badaladas notúrnicas a ministra dos encontros soturnos ainda pareça um tanto mais maligna e sedenta pelo sangue da nação do que o simpático sanguessuga Bento Carneiro, de Chico Anysio. Paciência. Outros, mais cabreiros, comemoraram em termos. Mais espertos, ou menos inocentes, sabem que no olho do furacão, de dentro da nau, é preciso ter os dois olhos abertos mesmo defronte à calmaria. Afinal, a borrasca nasce justamente do tédio de Poseidon. Por isso, mesmo comemorando o adiamento, esses ainda defendem uma resistência em nome da… do… de que mesmo? Ah, dos direitos, é claro.
Mas os cabreiros também se esquecem de que é preciso lutar sempre, independentemente da causa ou da perda, já que de bocada em bocada todos os direitos do povo brasileiro, sejam artistas ou espectadores, estão sendo devorados com a complacência daquele ignóbil gigante que além de desperto encontra-se também sodomizado; digo, lobotomizado. É, a coisa não anda fácil no país da cobra grande e da memória curta. Pobres diabos de Pindorama!
Verdade, verdadeira mesmo, é que nos descobrimos um povo descrente, escandaloso e imediatista. Uivamos quando o bicho pega, calamos quando o bicho solta. Parecemos bestas impassíveis que aceitam tudo goela abaixo: abusos, escárnios, falsas promessas, roubos, assassinatos. E tome remédio para aguentar o tranco: pra uns, prozac, para tantos outros, porrada! Numa antropofagia as avessas, devoramos uns aos outros sem a beleza da imagem do guerreiro.
E assim, a torto e sem direitos, temos como viver diante desse cenário? No fim das contas, meus amigos, acabamos refém dos bichos. É isso: só o bicho que anda solto. E só quem come, de fato, é esse bicho maldito. Por isso, nessa terceira parte da série de artigos a respeitos das ADPFs 183 e 293, daremos nome a esses bichos, independente da quantidade de cabeças que apresentem. Para discutir aberta e claramente a questão é preciso entender como toca a banda, que nesse caso envolve três sons dissonantes: o Estado, as Organizações e os Artistas.
O Estado
Pra início de conversa é preciso dizer que o Estado tem a alma de chumbo e é responsável por brutalidades, manipulações e hipocrisias tremendas; como bem disse Bakunin, “a negação mais flagrante, mais cínica e mais completa da humanidade”.
Não é preciso ser gênio para perceber a mão de ferro desse bicho, basta olhar para os últimos acontecimentos no Brasil e no mundo para se compreender a revolta contra ele. Tratamos de um Estado que defende o direito à liberdade de expressão e à livre manifestação artística, no entanto, esse mesmo Estado entende a liberdade como mercadoria e a transforma em prêmio para aqueles que podem pagar por ela. Defendem a liberdade? Parece que sim, mas a compreendem como querem.
Assim como acham justo e imprescindível a liberdade de expressão, insistem em dizer que em nome da mesma liberdade podem derrubar governos democraticamente eleitos. Espumam em nome tanto da liberdade à livre manifestação artística quanto da liberdade de produzir, acumular e usar armas de destruição em massa. Sejam ela psíquicas, atômicas ou químicas. Portanto, e sobretudo, o Estado é genocida e enviesado, e sua arma mais poderosa é a opinião pública manipulada por seus aliados, sendo eles as grandes corporações, que estão não só preocupadas em acumular capital, mas também em acumular o poder e a própria liberdade.
O Supremo Tribunal Federal não foge à receita passada. Detém as mesmas “qualidades” enumeradas ao Estado, já que é um de seus braços, e justamente por isso é absolutamente perigosa a sua ação sobre as artes. Não se enganem, esse bicho só aceita aquilo que lhe cai bem ao estômago.
Nunca estarei do lado desse Estado que desvia o olhar dos cidadãos da realidade para mantê-los sob controle feito o gado a caminho do abate. A discordância da defesa da manutenção das leis tal qual se apresentam hoje em dia no panorama artístico não é, da parte dessa coluna, uma defesa do Estado e, sim, uma ampla defesa dos artista que mesmo sem saber são prejudicados por injustiças pontuais, que serão colocadas em questão mais adiante.
As organizações
As organizações, como todos nós, estão submetidas ao poder do Estado. Por isso é preciso cuidado ao defendê-las cega e sistematicamente. É evidente que devemos reconhecer o histórico de luta não só dos homens como também desse bicho coletivo, apesar disso não podemos deixar de pensar e reinventar essas organizações quando nos confrontamos com questões que alumiam a sua obsolescência em certos pontos.
No tema em questão, tratamos de duas dessas organizações: a OMB e o Sated. Como um homem de teatro, não tenho conhecimento para tratar das imposições inerentes aos músicos, por isso tratarei apenas dos casos específicos referentes ao Sated/SP que, creio eu, anda conforme tantas outras organizações do gênero.
O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão (Sated) tem uma história de luta em defesa da classe. As críticas, que não são poucas, ao processo de Registro DRT não diminuem em absolutamente nada a contribuição do sindicato para as conquistas da condição formal dos artistas. Louvamos as conquistas, mas execramos as condições impostas hoje em dia. E quais são essas críticas? Ao meu ver, existem diversas, mas três delas são as principais: a submissão do Sated ao Estado, a falta de critérios transparentes (se é que tais critérios existem) e o valor absurdo da taxa para obtenção do atestado de capacitação ou Registro Profissional.
Deixaremos de lado por um instante a questão da submissão e trataremos a princípio apenas do processo para a obtenção do registro. O artista que hoje pretende conseguir seu DRT precisa passar pelos seguinte passos, de acordo com o site do próprio Sated: fazer um requerimento dirigido ao presidente do órgão, ao qual deverão estar anexados xerox de todos os seus documentos. São eles o RG, o CPF, o Título de Eleitor, comprovante de residência, a Carteira de Trabalho, a prova de escolaridade, as provas documentais de exercício de profissão, o contrato de trabalho visado pelo site do Sated, o currículo e carta de próprio punho, UFA!
Não bastasse a alta burocracia por trás dos documentos requeridos, ainda vem a paulada derradeira: a taxa administrativa, fixada em assembleia no valor de R$ 600, sendo R$ 330,00 depositados nominalmente em uma conta da Caixa Econômica Federal e o restante pago no ato da avaliação pelo Conselho de Capacitação Profissional. Ah, e que fique claro que o dinheiro não é devolvido em hipótese alguma.
Qualquer pessoa em sã consciência pode atestar diante da extensa lista de documentos e do valor absurdo da taxa, mais do que 50% de um salário mínimo, que hoje em dia conseguir o DRT é uma tarefa hercúlea e cara.
Por incrível que pareça, não encontrei no site ou na instrução normativa do sindicato nada a respeito de abatimentos ou isenção da taxa. Não existe essa possibilidade em nenhuma hipótese, tal qual a devolução da gaita dos futuros atores. A outra, e mais remota, opção é a prova de um curso profissionalizante ou uma universidade, por óbvio absolutamente mais caros. E antes que os desonestos digam que existem universidades públicas de artes cênicas, por exemplo, adiantamos que tais universidades apresentam um processo ainda mais excludente que o da Sated, afinal, com o sucateamento das escolas públicas e o enforcamento dos programas de acesso, ficou praticamente impossível encontrar nesses lugares alguém diferente dos mesmos privilegiados de sempre.
Qualquer pessoa em sã consciência pode atestar diante da extensa lista de documentos e do valor absurdo da taxa, mais do que 50% de um salário mínimo, que hoje em dia conseguir o DRT é uma tarefa hercúlea e cara. O impressionante nisso é que quem acaba marginalizando o artista é o próprio sindicato que deveria defendê-lo diante dos abusos dos patrões e do próprio Estado. Uma curiosidade: adivinha quem regula a concessão para o Sated cobrar a tal taxa? Isso mesmo… Bingo!
Já resolvemos o causo da submissão. Quanto à transparência do processo? A escuridão da coisa não nos permite uma opinião se quer. Está provado, então, que as tais organizações, como as guerras, acabam castigando a todos pelos erros, ou “acertos” em cash, de seus governos. Vê-se por aí que é preciso repensar não só as leis, como o próprio sindicato, que hoje se encontra apenas enquanto um fantasma pálido daquilo que já foi nos áureos tempos de combate.
Os Artista
Aos artistas, como a todos os cidadão brasileiros, cabe a luta. Qualquer um de nós sabe que as conquistas do registro não eliminaram a precarização do trabalho. Muitos artistas e técnicos ainda se veem obrigados a aceitar remunerações patéticas. Os vínculos empregatícios, quando existem, são absolutamente frágeis e na maioria das vezes protegem somente o empregador.
Na prática, o que significa o DRT? Para nós, pobres mortais do palco, significa pouco; quase nada.
Ainda estamos fadados à agonia em praça pública. Continuamos presos a velhas neuroses que dizem respeito a uma aposentadoria improvável e insignificante. A nós, cabe o resto do banquete. Continuamos lambendo os ossos feito cães famintos. Permanecemos quietos e conformados feito porcos num chiqueiro. Esperamos não mais Godot, e sim o respeito que nunca nos foi dado com ou sem o aval da lei e do Estado.
Se por uma lado, é preciso que defendamos o mínimo que temos, por outro, é possível através desse medo da perda reinventarmos o esquema. Aos artistas cabem as obras, o palco, o grito e isso basta. Com a união formada diante da descoberta do processo, que tramita desde 2013, descobrimos que em certos momentos temos voz, e que essa voz precisa se transformar em uma arma eficiente contra o silêncio que antecede o abuso. Nenhum gatuno age em alto e bom som!
Pressionemos o Sated! Afrontemos o Estado! A nossa luta será combustão, alucinação, beijo na boca ou não será nada. A nós cabe a revolução caraíba: vingança suprema contra a civilização pasteurizada.
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
Diante de tudo que foi exposto e defendido, a única saída possível é seguir o rumo e derrubar os muros. Não perguntar o caminho da estrada ou esperar madrugadas insones decidirem o nosso futuro. Estraçalhar o trigo, pisotear o pão. Entornar o vinho na casa e na cara do patrão. Esquecer o amor que nasce na barra do dia e esquartejar a luz que guia os amores que nos fazem meninos. O brilho cego da paixão é faca amolada, também é assim a nossa vontade e tão afiado é o pouco da nossa carne. A nós, acima de tudo, cidadãos e não só artistas, resta pouco; quase nada. Nadinha!
Resta uma fogueira se apagando, os pedregulhos aguardando o impulso do braço e a força da lâmina de nossa gente: faca amolada e insistente desde o infinito, hoje e sempre!