A pandemia que assola o mundo parece ter encontrado em terras brasileiras as condições ideias para fazer de nosso país sua morada definitiva. A falsa normalidade conquistada sobre uma pilha de corpos, até agora mais de 150 mil brasileiros sucumbiram diante do coronavírus, não deixa apenas vítimas entre os cidadãos brasileiros. Morrem também, pouco a pouco, a nossa esperança, os nossos sonhos, a nossa cultura e muito mais.
É evidente que a preocupação com as vidas, com os cidadãos brasileiros, deve estar acima de qualquer outra preocupação, no entanto não podemos fechar os olhos ou esquecer que outras consequências desse estado de sítio em que vivemos existem, e que elas, como a morte de milhares de pessoas, também podem e devem ser colocadas na conta do atual governo brasileiro.
Uma das áreas que mais sofreu com essa situação, além da saúde, é claro, foi a área cultural. Já tratamos por aqui diversas vezes desde o início desse estado pandêmico sobre o desdém com que o atual presidente, na figura de Mario Frias, tem tratado os trabalhadores da cultura e os espaços culturais. A absurda demora na criação, aprovação e implementação do auxílio emergencial para área, conhecido como Lei Aldir Blanc, os entraves e combates ideológicos, a falta de vontade e até mesmo a ideia de travar uma batalha cultural em nome da moral e da ordem, tudo isso teve um resultado catastrófico que fica a cada mais evidente: artistas e trabalhadores da cultura entregando suas casas, companhias decretando seu fim depois de décadas de resistência e o fechamento de espaços históricos são alguns exemplos.
Foi ali que muito da resistência teatral contra os anos de chumbo da ditadura aconteceu, além do palco do teatro ter sido ocupado por montagens históricas.
Na última semana, uma foto que ilustra perfeitamente a situação viralizou na internet, causando comoção e revolta. Na foto é possível ver a fachada do icônico Teatro Ruth Escobar, na Bela Vista, em São Paulo. Além dos diversos cartazes de espetáculos e do belíssimo e característico luminoso com o nome da sala, em vermelho e preto, é possível enxergar no canto à direita uma pequena placa branca com os dizeres: vende-se ou aluga-se.
Aos que desconhecem a história do Ruth Escobar, o teatro, não a também gigantesca atriz e produtora, foi ali que muito da resistência teatral contra os anos de chumbo da ditadura aconteceu, além do palco do teatro ter sido ocupado por montagens históricas. A Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais de São Paulo (Apetesp), responsável pelo espaço, disse que não existem mais meios de arcar com os quase R$ 80 mil reais mensais que são gastos para a manutenção do Teatro Ruth Escobar e de outro gigante paulistano, o Maria Della Costa, que volta às suas atividades nesse fim de ano para evitar ter o mesmo fim do irmão etiquetado e marcado a ferro quente pela especulação imobiliária. Nos bastidores, dizem que há um acordo verbal praticamente fechado e que, pasmem, o Teatro Ruth Escobar em breve deverá se transformar em mais uma igreja evangélica.
A morte do Ruth é apenas mais um capítulo da tragédia cultural que se instalou no brasil, assim em minúsculo mesmo. Fossemos um país sério, decente, com governantes minimamente responsáveis, com um mínimo de massa cinzenta no oco da cuca, casos como esse seriam inimagináveis. No entanto, é impossível negar que um Teatro como o Ruth Escobar, conhecido por sua resistência contra a ditadura militar, acabar num governo que exalta torturadores desprezíveis como Brilhante Ustra e dar lugar a uma igreja evangélica é a cara, cuspida e escarrada, do projeto que Jair Bolsonaro coloca em prática a todo vapor no país. Hoje é o Ruth Escobar, amanhã, quem sabe, pode ser você. É preciso que os artistas se levantem, que além de verbas públicas também exijam respeito e dignidade, caso contrário a demolição de tudo o que construímos enquanto nação será inevitável, infelizmente.