Escrever sobre Iracema 236ml – O Retorno da Grande Nação Tabajara, da Selvática Ações Artísticas, requer a articulação de temáticas fundamentais do que se entende por cultura no contexto brasileiro, em relação a uma noção “originária” ou “fundante” dessa nossa esquiva identidade. Isso se dá não somente pela relação óbvia que há entre o país (e ainda: a nação) e as questões indígenas (que antes de serem propriamente “questões”, são o “índio”: o corpo, a pele, o sangue), mas, também, porque a peça atinge terrenos outros, em um movimento de convergência. Os conceitos de alienação e trauma, segundo Márcio Seligmann-Silva, “indispensáveis para entender o indivíduo moderno”, são revelados a partir de uma montagem cuja dramaturgia e direção, ambas assinadas por Leonarda Glück, parecem promover a transcontextualização do romance de José de Alencar.
Quando o artista visual, escritor e tradutor Ricardo Domeneck escreve sobre transcontextualização, ele se refere, essencialmente, a importância do ‘contexto’ em um processo de tradução/reescritura e também sobre “a necessidade de respeitarmos a inescapável historicidade do fazer poético”. Na peça em questão, a transcontextualidade existe no uso da obra de José de Alencar, encarada como mito (ainda que a obra trate de uma suposta metáfora da criação do Ceará, aqui, parece haver sobre ela um olhar que identifica o exercício de uma concepção sobre o índio, o branco e o que mais consta nessa inter-existência que se consolidou a ponto de permanecer cristalizada, feito narrativa mítica), e revelada a partir de um contexto absolutamente atual, que abarca, além das questões indígenas, outros vários discursos iminentes. O que eu chamo aqui de transcontextualização, portanto, não é o deslocamento histórico simplesmente e a apropriação da obra literária, mas a pertinência desse movimento.
Ao escrever sobre outra peça nesse espaço, cuja temática era o período ditatorial brasileiro, eu já me referi ao “trauma” a partir de um texto intitulado “Já podemos falar dos nossos traumas?” de Cláudio Oliveira, publicado na edição de 199 da revista CULT. Nesse mês, curiosamente, a edição de número 205 da mesma revista apresenta materiais de dois assuntos que me interessam ao discorrer sobre Iracema 236ml: o trauma, uma vez mais, e o “lugar de corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia”, na perspectiva da performatividade do gênero, de Judith Butler, especialmente (mas também com textos de Marie-Hélène/Sam Bourcier e Richard Miskolci).
Estão ali, nos mais variados contornos, a história, a política, o capitalismo, a economia, o terceiro-mundismo e o modo como isso atinge e toca o corpo, o atual, o emergente, o urgente.
A ideia de que o reconhecimento do trauma permite uma “visão crítica da história e de nossa autoimagem” norteia a argumentação que define as questões envolvendo o índio, o negro e a ditadura como sendo os três principais traumas do Brasil. Esses são assuntos cuja ausência, inexistência e/ou insuficiência de visibilidade, discussões e reflexões acabam por não promover “significações” que indiquem mudanças estruturantes no modo como socialmente, politicamente e afetivamente os conceitos são apreendidos – isso, porque, há sempre manobras para que o espaço destinado a ‘isso’ não reverbere a ponto de atingir o(s) cerne(s). Por isso a urgência e a necessidade da resistência, do embate, do corpo exposto, da experiência radical, da subversão, da re-criação/destruição da “autoimagem”: “trata-se de assumir a visão traumática da história e a necessidade de inscrever a violência a contrapelo da lei do arquivamento – que é também a lei do esquecimento e da violência”.

A presença de uma narrativa que habita a projeção (tanto aquela dos termos psicológicos, como a literal, já que a peça tem um cenário composto por projeções de vídeos e imagens), coloca em embate a mulher indígena, o colonizador, as relações de poder e étnicas, a história, a(s) sexualidade(s) e as questões de gênero – de maneira direta ao, por exemplo, transpor as figuras do pai e do irmão de Iracema, presentes na obra de origem, em uma criação de figuras que corporificam e personificam as problemáticas das definições de gênero e sexualidade, parecendo enfatizar que “não cabemos no binário, na dualidade, na polarização”. É sobre ironia e crítica que se trata isso tudo. É sobre a “visão crítica da história e de nossa autoimagem” e muito mais.
Estão ali, nos mais variados contornos, a história, a política, o capitalismo, a economia, o terceiro-mundismo e o modo como isso atinge e toca o corpo, o atual, o emergente, o urgente. Ao propor o deslocamento histórico e contextual de um romance de 1865 e expor as contradições de uma historicidade que se configura cíclica e desonesta, a montagem revela a constante violência, e faz lembrar que, para além do colonialismo datado, também “os governos dos países que conquistaram sua independência após a última guerra não tem a menor boa vontade para com as culturas ditas atrasadas que existem em seu território”, ainda que isso tenha sido constatado depois de haverem sido usurpados, estuprados e usados, já que essas sociedades, agora, “estão muito mais ameaçadas pelo terceiro-mundismo do que o estavam pela colonização”[1]. Isto é, não distante das institucionalidades estão as relações sociais potencialmente exemplares nos ofícios da censura, da repressão e corrupção, já que são elas parte de quem mantêm um pensamento e uma conduta colonizadora já deslocada historicamente da mesma. Ao que tudo indica, a responsabilidade é, então, de agentes bem mais próximos do que se supôs.
A voz que ecoa se perguntado “Será que esse déjà vu nunca acaba?” não parece promover respostas e, pelo contrário, centraliza a pergunta que, assim como as circunstâncias evocadas, precisa ser repetida hiperbolicamente, uma das possibilidades parece se traduzir em: até quando a realidade (fenômeno e matéria tão fugidias) vai ser composta pela negação do que se convencionou chamar “corpo estranho”?
[1] Lévi-Strauss em referência a obra Tristes Trópicos, em entrevista a Didier Eribon.
SERVIÇO
Iracema 236ml – O Retorno da Grande Nação Tabajara
Quando: 2, 3 e 4/10, Sexta a Domingo, às 21h;
Onde: Complexo Cultural Funarte São Paulo – Sala Arquimedes Ribeiro – Alameda Nothmann, 1058 – Campos Elíseos;
Quanto: Entrada Franca – os ingressos precisam ser retirados 1 hora antes do espetáculo na bilheteria do teatro;
Classificação: 16 anos.