“Em um avião, somos seres transitórios. O corpo que voa sobre o mundo está como liberado de sua própria matéria. Voa, flutua, está suspenso. Lá em cima, não estamos em nenhum país, não pertencemos a nenhuma região, não temos um nome ou um ofício. Somos uma parte minúscula do grande ar cósmico, um ponto escuro, um organismo sem tempo nem espaço definidos. O presente isola-se durante algumas horas para reconhecer o passado e postergar o futuro: um passageiro deixou um lugar e não chegou a outro. Seu estado é transitório, habita uma pausa entre dois modos de vida. Vem de um clima, de um céu e de umas paredes, de um conjunto de obrigações, e dirige-se a outro. No momento, só recorda e espera. Depois de algumas horas, o mundo dá uma pirueta e o caos se regenera. Ao aterrissar, nós nos reinserimos o melhor que podemos entre as coisas. Aterrissar, voltar, chegar, as antigas coisas novas. Chegamos de fora, de longe. Sempre estamos partindo e chegando, e regressando. Para mim, viajar sempre foi um verbo temerário.”
A imagem de uma mulher fazendo ginástica enquanto fuma um cigarro, minutos antes de se entregar a um choro copioso. Uma cena ironicamente contraditória, exatamente como a vida. Faz lembrar figuras de Buenos Aires ou Madri, cidades em que se fuma muito e em que roupas de jogging e o vício estão em um mesmo quadro – referências que poderiam ser as narrativas de Alonso Cueto (trecho acima), Enrique Vila-Matas ou Damián Szifrón, por exemplo. É esse o tom da peça O Fantástico Coração Subterrâneo.
A montagem apresenta a inconstância de relações familiares e afetivas. Tão estáveis quanto uma viagem de avião, imprevisível e arriscada. Uma casa pode ser um espaço no qual indivíduos criam circuitos que não se encontram. É possível habitar um lugar sem que nos esbarremos, em algum momento? E, depois do embate, há como se cogitar continuidade, um deslocamento? O choque é o fim? São questionamentos que parecem permear a poesia do trabalho, cuja dramaturgia e direção são de Diego Fortes.

A presença de um escritor, que assume função de narrador, em um movimento, ao mesmo tempo, de memória e criação, faz com que a vetorização dessas vidas compartilhadas seja, de alguma maneira, ordenada – não porque possuam regularidade ou posições rígidas. Ao contrário, as trajetórias desses três irmãos, Vito, Nicolas e Ângela, têm um caráter absolutamente inventivo e fantástico. São eles seres transitórios, que habitam “uma pausa entre dois modos de vida”, como se esperando um retorno, uma partida ou fenômeno outro capaz de promover mudança. Alteração que permita que o “fora daqui”, o “além dos limites”, “o horizonte plausível” seja vislumbrado.
“É possível habitar um lugar sem que nos esbarremos, em algum momento? E, depois do embate, há como se cogitar continuidade, um deslocamento? O choque é o fim?”
A referência ao avião, na montagem, pode ser entendida como uma possível metáfora para a existência (também para o fim dela), e aqui, somada ao trecho de O Sussurro da Mulher-Baleia, de Cuento, indica a suspensão, relacionada à transitoriedade que tem uma viagem (“viajar, um verbo temerário”). Uma espécie de hiato. Pessoas que estão sempre prestes a aterrissar, mas, onde e como? Ninguém parece saber exatamente onde está e, mais, o porquê da localização.
Um estado de isolamento em que a saudade e o amor, ainda que distantes, são compartilhados em lembrança, vício e morte: cada qual em seu próprio universo, cercado de luto e ausência, forçado a escavar, desconfiado que atrás dos ossos exista coração. Figuras empenhadas em uma aparente tentativa vã de significar “o mistério”, “o acidente”, sem saber, no entanto, que “o sentido da vida é o sentido que nós damos pra ela” e “ela será tão confusa quanto nós”.
SERVIÇO
O FANTÁSTICO CORAÇÃO SUBTERRÂNEO
Quando: de 22 de agosto a 8 de setembro;
Horário: de sábado a terça-feira, sessões às 18h e às 20h. Aos domingos, também às 11h;
Onde: Auditório Poty Lazarotto (MON) – Rua Marechal Hermes, 999 – Centro Cívico;
Quanto: Gratuito.