Quem ouve o grito dos fantasmas emudecidos?
A oeste daqui, com oceanos a perder de vista ilustrando a distância, uma bomba ecoa no fundo da alma de uma criança. A poeira daquele instante deveria cobrir de vergonha toda a humanidade. Mais próximo, na esquina, em frente ao apartamento onde moro, Fabiano toma uma chuva gelada enquanto tenta esculpir um sorriso diante do pão amanhecido que agora boia dentro de um saco plástico. Apesar do desmoronamento aparente da “bóia”, mastigar ainda é preciso. Adiante, na fronteira do estado, um estudante tomba assassinado por conta da cor de sua blusa, do caminho dos seus lábios ou da liberdade de seus olhos. Caminhos, lábios, desejos e liberdade foram soterrados pelo ódio. Hoje, o horror nos comprime sistematicamente. São tempos esmagadores, onde cada abuso parece pesar mais de uma tonelada diante desses nossos frágeis ombros. Não há escapatória e tão pouco parece haver alguma solução para isso. Comprimidos, à base de comprimidos, seguimos nosso rito de desespero.
A impossibilidade pode muitas vezes anestesiar. Assistimos passivamente a tal ofensiva como se nada pudéssemos fazer além de clamar: pedir a um desses tantos Deuses por uma luz, uma saída pra alumiar toda essa escuridão que nos cega. Apesar de admitirmos que hoje em dia que pouca crença ainda nos resta. A dúvida é que toma conta das ruas no reinado.E o teatro o que tem a ver com isso? Uma peça muda o rumo do mundo? Essas e outras questões nunca ressoaram tanto pelos cantos escuros do palco.
Que fé temos no amanhã para insistirmos em criarmos obras se não acreditamos mais nos rumos do mundo?
Para perguntas sem respostas é preciso sempre contar com o acaso. E ao acaso acabei me deparando com um pequeno trecho da intervenção de Ludwik Flaszen no Congresso Internacional dos Jovens Escritores, que aconteceu em Paris em fevereiro de 1967. Eis o trecho em questão: “O que é o teatro? Um templo? Um estádio? Uma ágora? Uma feira? Uma tribuna? Um cerimonial de corte? Um rito carnavalesco? (…) diante de tudo, o teatro permanecerá o hobby de maníacos solitários.” A fala de Flaszen ressuscita as dúvidas e não nos aponta ao menos um norte. Talvez o teatro não tenha a foça de mudar definitivamente o mundo, afinal ele também é obra de seres que buscam resposta, mas que outra alternativa temos a não ser acreditar na força do teatro como quem crê na prece que dirige ao vento? Apesar de toda essa incerteza ainda é preciso se posicionar diante do mundo, afinal tomar posição é tão imprescindível quanto mastigar, por isso mais do que uma definição, a prima simpática da limitação, é preciso vasculhar os motivos que nos levam à criação. Que fé temos no amanhã para insistirmos em criarmos obras se não acreditamos mais nos rumos do mundo? A fé na mudança, evidentemente. E mesmo que essa mudança não se principie no horizonte, não restam dúvidas de que é ela que nos faz seguir sempre a diante. Essa talvez seja a grande beleza desses maníacos: a insistência no sonho!
Nessa realidade pesadelo, talvez a grande possibilidade de transformação seja essa forma de resistência que se dá através do sonhar. Nos devaneios artísticos que vivemos ainda há espaço para a paixão massacrar o desespero, e nenhuma cifra há de ter o mesmo peso de um sorriso. Nossas obras não cessarão as barbáries atômicas mundo a fora, também não servirão de alimento para aqueles que passam fome e muito menos apagarão da história as atrocidades cotidianas cometidas pelo bicho homem. Sabemos que o tempo é detentor de mistérios e por isso não sofremos do histérico imediatismo que nos imputam, apenas insistimos. Insistimos pelo simples fato de que insistir é a única saída que nos resta, mesmo que essa saída se dê de forma doída, obsessiva.
Nós, os maníacos de nosso tempo, temos nosso hobby enquanto causa, e não abriremos mão desse único luxo que nos resta. Hoje e sempre!