Curitiba cheirava a enxofre. Não o de nossa associação imagética com o inferno, mas o da chuva, também significante da cidade, dando o ar nos primeiros momentos do outono. Isso servia como mais um ingrediente neste momento da máxima polarização política no país do futebol. Curitiba força que sejamos, também, a capital do teatro, ao menos pelos próximos dias.
Com abertura do Guaíra prevista para as 19 horas, trilhei o trajeto até o teatro, não sem antes acompanhar mais uma manifestação anti-governo e pró-democracia, como se fossem a tragédia e a comédia se aprumando na coxia. Os gritos, divididos entre o mantra “não vai ter golpe” e a rasa constatação de que “a nossa bandeira nunca será vermelha”, davam o tom do que poderia ser a noite. O Brasil é um barril de pólvora. As faces eram mais fechadas do que se poderia esperar quando imaginamos que estaremos na casa maior do teatro curitibano, assistindo ao pontapé inicial da 25ª edição do Festival de Curitiba. E mais, com a menina dos olhos de Oyá no palco.
Em frente ao Centro Cultural Teatro Guaíra, duas filas separavam quem tinha convite e quem mantinha o nome em uma lista. Parecia a vida pregando uma peça, obrigando mais uma vez que, momentaneamente, nos dividíssemos entre esquerda e direita. Se havia uma sorte naquele momento, era o cheiro de pipoca no ar, disfarçando o cheiro acre que invadiu nosso cotidiano. Flashes, muitos deles, seguidos de sorrisos, conversas ao pé do ouvido, pequenas sentenças de culpa ou consternação. O assunto é tudo, menos teatro.
Provavelmente esse fator tenha tornado a garota que à minha frente conversava sobre o futuro de seu relacionamento mais interessante (e peculiar). “Eu não quero que ele largue o trabalho dele. Disse ‘termina teu mestrado, aí você tenta transferência para cá’. Não quero ninguém tolhendo minha liberdade”, dizia ela, ciente da importância que é a liberdade no teatro da vida. Uma pequena fila e uma espera de cerca de trinta minutos até que as portas se abram. A tortura surgia da dor nos pés, culpa do All Star escolhido para a ocasião, e do calor propiciado pelo blazer, escolha que teimava em não se mostrar acertada ou errada. Curitiba pregava outra peça. Fazia sentido, não?
As portas se abriram e com elas o Festival de Curitiba ficava mais próximo. Aquele gigante Guaíra tornava esse começo mais difícil. Ele, tal como nós, é vítima dos bastidores. Restou “apenas” a “delicadeza” de escolhê-lo para a abertura. Mas te digo, Guaíra, dói saber que foi só ontem, assim como a Copa que o Brasil (des)organizou e cometeu o crime maior de não pisar o “tablado” sagrado do Maracanã.
Entre um poema e outro, ela insere pequenos recortes de canções. Cada timbre que se desprende de suas cordas vocais provoca arrepios e lágrimas.
Perfumes se confundiam nessa espera para que Bethânia subisse ao palco com seu espetáculo. Doces, amadeirados, de lavanda ou cânhamo, havia ainda o danado do cheiro da pólvora, polvilhado pelas conversas de quem acredita que o fim justifica os meios, fura fila, vomita seus privilégios, mas veste a camisa da Seleção para protestar contra a corrupção, e pelas pessoas que ainda defendem o indefensável, como se acreditar na democracia nos fizesse tapar os olhos frente aos erros cometidos.
Acendem-se as luzes. No palco, patrocinadores e produtores se dividem na dura (e enfadonha) missão de fazer os discursos obrigatórios. Há um consenso: tolerância. E não é fácil deixar isso claro. A cada menção ao Governo Federal, do Estado, Petrobrás ou Prefeitura, o barril sofre pequenas precipitações. O público está tenso, e a tensão de quem fala ao microfone corrobora a informação. Na infelicidade das palavras do Secretário de Cultura do Estado e do representante da Companhia Paranaense de Energia (Copel), órgãos ligados ao Governador Beto Richa, oposição ao Governo Federal, as primeiras vaias e a sensação de que o caldeirão iria entornar.
Boa parte dos representantes da classe artística inicia um grito de “não vai ter golpe”, enquanto um terço do Guaíra vaia a manifestação e o último terço parece meio perplexo. Por minutos, parece que será encenada uma batalha campal nos assentos do teatro. Gritos, ofensas, respostas atravessadas. O clima esquentou, as torcidas estavam inflamadas, mas não era Fla x Flu. Ou seria? Por sorte, as luzes se apagam e uma voz pede que celulares sejam desligados. Bethânia entra.

Inteira de branco, a menina dos olhos de Oyá corre descalça até seu posto no palco do teatro. O público inteiro se rende, a adrenalina diminui. Palmas, muitas palmas. Bethânia agradece, sinceramente emocionada. Ela sabe que apartou o furor apenas com sua presença, ainda que muitas pessoas que lá estivessem não tivessem a mínima ligação com a mensagem que a cantora carrega no peito, na voz e nas letras. “Eu queria muito agradecer a honra de abrir o Festival de Curitiba. Eu não sou do teatro, não sou atriz. Amo poesia e é isso que trouxe aqui. Obrigada por deixarem que eu compartilhe isso com vocês”, diz a cantora, abraçada por uma chuva de palmas, assobios e lágrimas.
Durante uma hora, Maria Bethânia compartilha com o público seus versos prediletos. Fernando Pessoa, Drummond e até poemas de seu professor da época de colégio. “Acho importante trazer esses versos dele. Eu me formei inteiramente em uma escola pública e acredito que isso possa demonstrar que o ensino público no Brasil tem qualidade”, diz a cantora, antes de receber mais pétalas de palmas. Descalça no palco, seus pés parecem raízes de uma árvore frondosa cravada no centro de Curitiba. Entre um poema e outro, ela insere pequenos recortes de canções. Cada timbre que se desprende de suas cordas vocais provoca arrepios e lágrimas. O público chora, emocionado pelo momento ímpar que viveu, mas, também, tocado pelo alívio que foi refugiar-se naqueles versos, onde não há desespero, apenas beleza.
Ela encerra relembrando a mãe, a eterna Dona Canô. O afago que geralmente faz na foto da mãe foi feito em nossos corações. Maria Bethânia entendeu e fez bem o papel de mostrar que a pólvora deve ficar apenas no teatro, explodir apenas no palco, e respingar a mudança na alma do espectador. O Festival de Curitiba finalmente começou. O teatro é, novamente, um barril de pólvora. E que assim seja.