Trocando Em Miúdos: A peça Jukebox Vol. I, da companhia de teatro Vigor Mortis, estreou em 2013 e esteve em cartaz no Festival de Teatro de Curitiba. A produção paranaense está circulando pelo país no Festival Palco Giratório do SESC – motivo para uma breve reflexão sobre políticas públicas culturais.
É sempre um tanto confuso falar em arte e em cultura. Especialmente porque, às vezes, é difícil saber a concepção de quem fala e de quem ouve – não se sabe a origem da manifestação e tampouco para onde ela mira. Há uma pluralidade de possibilidades para se inserir nas discussões, mas não entender o contexto e as referências de um discurso pode causar bastante ruído na comunicação. Um exemplo disso é a dicotomia entre “arte erudita” e “arte popular” – categorizações que, em certas abordagens, se tornam empecilhos para se pensar o acesso e o alcance de uma possível diversidade cultural. Alguns pontos, no entanto, parecem ser iniciais e anteriores aos próprios temas específicos da produção artística. São questões que permeiam um terreno estruturante da cultura. São questões fundamentais. É o caso das políticas públicas culturais.
Segundo o Ministério da Cultura, o IBGE e o IPEA (clique aqui) as circunstâncias do Brasil, referentes às desigualdades no acesso à produção cultural, são as seguintes:
“Entretenimento: a minoria dos brasileiros frequenta cinema uma vez no ano. Quase todos os brasileiros nunca frequentaram museus ou jamais frequentaram alguma exposição de arte. Mais de 70% dos brasileiros nunca assistiram a um espetáculo de dança, embora muitos saiam para dançar. Grande parte dos municípios não possui salas de cinema, teatro, museus e espaços culturais multiuso.
Livros e bibliotecas: o brasileiro praticamente não tem o hábito de leitura. A maioria dos livros está concentrada nas mãos de muito poucos. O preço médio do livro de leitura é muito elevado quando se compara com a renda do brasileiro nas classes C/D/E. Muitos municípios brasileiros não têm biblioteca, a maioria destes se localiza no Nordeste, e apenas dois no Sudeste.
Acesso à internet: uma grande porcentagem de brasileiros não possui computador em casa, destes, a maioria não tem qualquer acesso à internet (nem no trabalho, nem na escola).
Profissionais da Cultura: a metade da população ocupada na área de cultura não têm carteira assinada ou trabalha por conta própria.”
Essas poucas informações são indícios suficientes para se constatar um contexto em que a produção cultural é restrita (e também levanta outros pontos importantes, como o reconhecimento da arte enquanto “trabalho”). Esse levantamento indica, de maneira direta, a relação entre a situação econômica, a geografia e o acesso à arte no país. O “acesso” é o conceito-chave das políticas públicas. É importante lembrar, no entanto, que existem outros fatores – é claro e comprovado, por exemplo, que a “elite econômica”, definitivamente, não é a “elite cultural”(historicamente associadas). Como fazer com que mais pessoas vivenciem a arte e a produção cultural, levando em consideração a conjuntura do Brasil?
A partir daí surgem muitas outras perguntas. A forma de organização e sistematização, a conceituação, a participação efetiva, a duração e várias outras especificidades são necessárias para a existência e a continuidade de iniciativas e ações que, de fato, promovam o acesso justo à arte e às manifestações culturais.
“Como fazer com que mais pessoas vivenciem a arte e a produção cultural, levando em consideração a conjuntura do Brasil?”
Uma das iniciativas que promovem uma tentativa de mudança nesse panorama é o Festival Palco Giratório do SESC.
O Palco Giratório é um festival em que as peças selecionadas circulam por até 50 cidades do país – e parece vir na contramão de outras iniciativas, como a Lei Rouanet, que “constitui uma pirâmide de privilégios e está absolutamente concentrada. Quase 90% do dinheiro fica na Região Sudeste, e 80% fica dentro do Rio e de São Paulo, e no Rio e em São Paulo beneficia sempre pros mesmos”.
Dois questionamentos incitam a existência do festival:
“Considerando as diferenças culturais e as desigualdades sociais e econômicas do país, no qual uma grande parte dos cidadãos ainda possui acesso muito restrito a equipamentos culturais e a obras artísticas, como detectar e eleger produtos cênicos capazes de encantar, surpreender e afetar seus espectadores?
Como perceber quais grupos e coletivos estão prontos e com disposição para embarcar na desafiante missão de percorrer, durante um ano, o grande continente chamado Brasil, mostrando o seu trabalho e tendo encontros com sua gente?”
São 33 curadores a frente do evento, que em sua 18ª edição está “interessado em territórios híbridos” e na “acessibilidade nas artes”.

A peça paranaense Jukebox Vol. I da Vigor Mortis talvez evidencie a questão do hibridismo. A trajetória de Paulo Biscaia Filho como diretor de teatro e cinema indica que a relação entre as duas áreas é um importante aspecto do seu trabalho e da companhia. Nessa montagem, cuja origem é em Nick Cave, o que o público vê é a projeção do que ocorre dentro de uma “jukebox” em que, ao invés de músicas, cenas podem ser selecionadas.
Embora exista esse caráter de radicalização – a projeção no lugar de uma “performance ao vivo” – que inspira muitas discussões sobre os limites do teatro, a centralidade da montagem parece ser, para além das circunstâncias, a própria “performance”. Kenni Rogers é o ator responsável por energéticas e variadas interpretações em cenas selecionadas por espectadores sorteados, cujos universos envolvem o crime e a violência. A companhia Vigor Mortis, em Curitiba, é responsável por uma “cena” que excede os palcos e abrange também eventos e ações de cinema, quadrinhos e música com as recorrentes temáticas pop e de horror.
(São vários os materiais existentes sobre o tema das políticas públicas, em abordagens bem distintas: históricas, críticas, analíticas, jornalísticas etc. Recentemente, dois textos da Folha de S. Paulo o abordaram: a colunista da Ilustrada, Fernanda Torres, com “Indignos“, e o presidente da Funarte, Francisco Bosco, em uma réplica ao texto de Fernanda, com “Os Normais“).