Constantin Stanislávski ainda é o maior. Goste-se ou não do fundador do Teatro de Arte de Moscou, é impossível negar a sua importância e a influência de suas ideias mesmo nos dias atuais, quase um século depois da sua morte. Referência quando o assunto é método de atuação, Constantin revolucionou a arte da interpretação com suas obsessões, seus espetáculos e, principalmente, com a sua metodologia. Tão criticada quanto aclamada, sua figura ainda desponta, mirando o infinito, no mais alto panteão dos gênios da cena. O russo era treta.
O filósofo britânico Alfred North Whitehead escreveu que “toda a história da filosofia resume-se a uma série de notas de rodapé à obra de Platão”. Exageros à parte, não seria incorreto dizer o mesmo a respeito de Stanislávski quando o assunto é o teatro. Até mesmo os que o atacam, que pretendem demolir suas ideias, admitem que o ponto de partida é sempre o mesmo: Constantin. E não poderia ser diferente. É evidente que existem diversos exemplos de homens e mulheres que entregaram suas vidas para pensar e desenvolver espetáculos. O trabalho do ator é esmiuçado a séculos e assim o será sempre. No entanto, a obsessão e a disciplina do mestre russo, além do claro amor pela cena, fizeram-no dedicar-se inteiramente à elaboração de um método de interpretação, e a busca pela atuação perfeita tornou-se, inevitavelmente, a busca pelo método perfeito, razão de toda a vida do homem.
Além dos espetáculos do Teatro de Arte de Moscou, onde geralmente atuava e dirigia, Stanislávski criou laboratórios e estúdios para experimentações onde passava adiante o método que desenvolvia simultaneamente. O diretor teve diversos alunos durante a vida e todos, de alguma maneira, levaram seu legado e seus ensinamentos adiante. O mais famoso deles talvez seja Meyerhold, que ao lado de Maiakovski, e embasado pelo método de Stanislávski, criou seu próprio método e reinventou a ópera. Por aqui, bravas terras tupiniquins, Eugenio Kusnet, também aluno do cabra, trabalhou com grupos lendários como Teatro de Arena e Teatro Oficina, além de introduzir o método Stanislávski na USP a pedido dos alunos, no fim dos anos 60.
“O sistema é um livro de referência, não uma filosofia. Quando a filosofia começa o sistema termina”
Diferente de Sócrates, que desprezava a palavra escrita, Constantin dedicou-se sistematicamente à elaboração de escritos a respeito de suas ideias. Desse trabalho resultaram diversos livros, sendo o mais famoso deles O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, livro em forma de diário no qual o autor destrincha todo o seu método ao leitor. A obra é dessas imprescindíveis, não apenas aos aspirantes a atores, mas a qualquer pessoa que se interesse por cinema, teatro, novelas, séries e coisas do tipo. Onde houver alguém interpretando haverá ao menos uma sombra desse livro-oráculo em algum dos cantos da sala.
A obra é dessas imprescindíveis, não apenas aos aspirantes a atores, mas a qualquer pessoa que se interesse por cinema, teatro, novelas, séries e coisas do tipo. Onde houver alguém interpretando haverá ao menos uma sombra desse livro-oráculo em algum dos cantos da sala.
A primeira edição da obra data de 1936, nos Estados Unidos, e desde aquela época levanta polêmicas a respeito de seu conteúdo, organização e apresentação. No Brasil, o clássico foi lançado em 1964, com o famoso título de A preparação do ator, e foi integralmente traduzido do inglês. Segundo especialistas, tanto a edição inglesa quanto a brasileira trazem apenas a primeira parte da obra original e, pasmem, cortada pela metade. Essa desorganização traria equívocos quase irreparáveis a respeito do método Stanislávski nos dois países. Na tentativa de corrigir esse absurdo, a editora Martins Fontes lançou tempos atrás uma primeira edição reunindo as duas partes da obra principal. O trabalho do ator – Diário de um aluno traz a obra completa do diretor traduzida também do inglês.
O retorno à língua original
Toda tradução é cercada de mistérios, dúvidas e segredos. Walter Benjamin escreveu em ensaio intitulado “A tarefa do tradutor” que nenhuma tradução será viável se tentar, essencialmente, ser uma mera reprodução do original. À primeira vista, a afirmação pode parecer absurda, mas Benjamin tinha razão, como sempre. Segundo o filósofo e crítico literário alemão, o próprio original se modifica através do tempo, e essa metamorfose é uma das condições inegociáveis da sobrevivência de uma obra.
Os anos que carregam o progresso em seu lombo nos obrigam a sepultar mais do que seres vivos. Sepultamos palavras, expressões, ideias; reinventamos a língua, a linguagem e a linguística. Segundo Benjamin, a tradução é, em primeiro lugar, uma forma, e concebê-la como tal significa acima de tudo o regresso original, mas é preciso procurar a lógica da coisa na subjetividade e não na própria vida da língua, afinal tudo o que é vivo está em movimento.
Seguindo o conselho de Walter Benjamin, talvez um dos grandes tradutores dos últimos tempos, a Editora 34 anunciou recentemente que lançará no próximo ano a principal obra de Satnislávski traduzida direto do russo. A tarefa hercúlea ficará a cargo dos tradutores Diego Moschkovich e Marina Nogaeva Tenório. Segundo a editora, os trabalhos já estão em estágio avançado e a edição pretende cobrir uma lacuna que há muito se observa no cenário nacional.
A importância da tradução direta é indiscutível. A famosa “tradução da tradução” muitas vezes acumula erros, extermina belezas e assassina passagens. Mais de cinquenta anos depois da primeira edição traduzida da obra no Brasil, onde a conhecemos pela metade, é um alívio o anuncio feito pela Editora 34, mas não podemos nos furtar em dizer que a espera foi longa, longa demais.
Que outras editoras sigam o exemplo, dedicando tempo e dinheiro a traduções cada vez mais acertadas, no intuito de entregar ao público algo que seja digno da obra traduzida. Afinal, estamos fadigados de ler Frankensteins literários, cuja única semelhança com o original é o nome do autor tingido na capa.