Em 2003, o músico gaúcho Vitor Ramil apresentou “A Estética do Frio“ no Théâtre Saint-Gervais em Genebra, na Suíça, como parte da programação do evento “Porto Alegre, un autre Brésil”. A conferência (mais tarde tornada livro – disponível aqui) consiste em um relato bastante pessoal sobre identidade artística em que o território é de crucial importância. Nascido em Pelotas, no Rio Grande do Sul, ele narra como o tema de uma estética do frio lhe surgiu: foi quando percebeu que o contraste entre o lugar em que nasceu e viveu e as cores e sons tropicais conhecidos e reconhecidos enquanto “Brasil”, afetavam intensamente a sua produção artística e as suas experiências individuais. A ausência de um sentimento de pertencimento frente a uma imagem de país que não lhe é familiar e não se configura como sendo genuína e sincera. A sensação de ser um estrangeiro em seu país (o midiático, especialmente).
Ramil é claro em dizer que a estética do frio “não se pretende, em hipótese alguma, uma formulação normativa”, mas que a “própria idéia do frio como metáfora amplamente definidora aponta para esse caminho: o frio nos toca a todos em nossa heterogeneidade”. Um trabalho que, além de tudo, envolve um contexto fronteiriço, uma região do sul do país em que as linhas divisórias se (re)configuram a partir de outros critérios que não os territoriais, somente (temática que o artista explora também em uma produção cinematográfica chamada A Linha Fria do Horizonte, dirigida pelo curitibano Luciano Coelho). A ideia que, de alguma maneira, orienta o pensamento é uma frase de Jorge Luis Borges: “a arte deve ser como um espelho que nos revela a nossa própria face”.
A impressão é de que a publicação (ou antes, a fala) é resultado de um processo de autoconsciência, exercício de um projeto muito maior que se aproxima a desejos relacionados a descoberta, afirmação e que assume caráter histórico e contextual ao refletir sobre temáticas tais como a colonização e imigração europeia e as relações com outros países da América do Sul – relações linguísticas e outras bem menos sistematizadas envolvendo o imaginário e a subjetividade. Embora se refira exclusivamente à música é possível pensar as colocações de Ramil em uma esfera mais abrangente.
O uso da literatura surge como um indício do desejo de trabalhar cenicamente textos literários, talvez em um movimento que é exercício de identidade e que busca a permanência.
É a partir dessa temática, que é ao mesmo tempo resgate e construção, que a ideia de uma estética do frio de Vitor Ramil pode ser usada como disparador para pensar Paranã, peça que se constitui com a montagem de textos de autores paranaenses. O Paraná e o Rio Grande do Sul, ainda que tenham sua singularidade e seus panoramas próprios e bastante distintos entre si, apresentam pontos de convergência: o frio, assunto principal, por exemplo.
Mais do que os fatores históricos e as especificidades em si, estão os modos com que as circunstâncias afetam o individuo e o coletivo. A mobilização de temas e autores do estado, Wilson Bueno, Dalton Trevisan e Domingos Pellegrini é um modo de aproximar, resgatar e voltar-se para elementos que constituem, de alguma maneira, o que se entende enquanto arte – em uma perspectiva bem pouco “normativa” e, pelo contrário, atenta aos referenciais, às poéticas e as possibilidades de manuseio, fazendo uso de metodologias e manobras várias – especialmente por se tratar de uma transposição de uma linguagem à outra. O uso da literatura (antes de Paranã, esteve em cartaz no Novelas Curitibanas a peça Catatau – a justa razão aqui delira) surge, nesse ano, especialmente, como um indício do desejo (necessidade?) de trabalhar cenicamente textos literários, talvez em um movimento que é exercício de identidade e que busca a permanência.

Wilson Bueno, por exemplo, com Mar Paraguayo, ao estabelecer como línguas o “portunhol” e o guarani parece articular as questões que envolvem essa geografia feita de uniões e misturas, além da própria literatura. Centra as discussões em uma figura feminina, a “marafona de Guaratuba”, dotada de mistério, decadência e dubiedade que vive na região do litoral do Paraná. A melancolia e a solidão, cercadas por um ar marginal, de reclusão e uma espécie de sordidez são características que parecem dar o tom dessa e de outras obras usadas na montagem.
Dalton Trevisan é revelado em um recorte menos erótico (os contos “Dois Velhinhos”, “Ipês” e “Mil Passarinhos”) do que comumente é apresentado e revela uma Curitiba pelos olhos enclausurados de um corpo que é quase vulto e que tem a janela como única abertura para ver o mundo. Trevisan também surge em uma pitoresca e teatral narrativa do “Grande Circo de Cavalinhos” em que o ‘fracasso’ é a principal atração. Domingos Pellegrini é o autor que apresenta o texto mais bucólico, ao narrar o “Encalhe dos 300” na região de Cruzeiro do Oeste e Cianorte – na peça é, talvez, a cena que mais evoca uma oralidade, se assemelhando a um “causo”.
O Paraná surge, assim, de diferentes cores, em diferentes espacialidades, permeado por uma atmosfera que nem sempre é só de melancolia e solidão, mas é quase isso: um lugar em que as metáforas parecem fazer o caminho para dentro.
* O título desse texto é em referência a uma composição de Vitor Ramil e ao cenário da peça: sugestivos sapatos compondo uma linha.
A fotografia é de Melvin Quaresma.
Serviço
Paranã
Onde: Teatro Novelas Curitibanas (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1.222 – São Francisco)
Quando: De quinta-feira a domingo, às 20 horas, até dia 6 de setembro.
Quanto: Gratuito (a distribuição de ingressos inicia às 19 horas)