A rua é sempre encanto, independente das rotas ou dos rumos que tomamos. Flanar pelos cantos de sua terra, caminhar à deriva em busca do delírio cotidiano de cada dia, reconhecer nas curvas de cimento de sua própria cidade o significado mais simples e possível da liberdade. Há algo de mágico nesse ato. Algo que nos toca feito a leve brisa de um eterno outono onde as folhas secas bailam pelas praças. Apesar de não percebermos e até de ignorarmos a questão, a possibilidade de colocar a sola da bota na rua quando bem entendemos, sem motivos ou justificativas, é algo de extraordinário e deve ser tratado como tal.
É evidente que estamos desacostumados a reconhecer no dia a dia qualquer vestígio de beleza. Temos a íris embrutecida pela obsessão com os ponteiros. Ostentamos os pés adestrados pela racionalidade e o espírito trancafiado no calabouço do mercado de trabalho. Apesar de estarmos sempre em trânsito, poucas vezes somos capazes de olhar para o céu, quando estrelado, feito um homem que espera uma chuva de chamas vinda de lá. Como burros de carga, caminhamos. Temos o olhar delimitado por rédeas imaginárias e seguimos em ritmo frenético a caminho de um inevitável abismo. Entregamo-nos ao fluxo diário de ovelhas correndo para o nada, desviando de ônibus, de carros, de frustrações e do desespero que nos impede de parar. Estamos sempre em movimento, muitas vezes inclusive diante dos mesmos cenários e pessoas. Apesar disso, não sabemos quando foi a última vez que sorrimos pra alguém na rua sem motivos. A vida perdeu o brilho quando a rua perdeu o sentido. Hoje, a rua ao invés de possibilidade é acesso, via de piche que rasga a cidade e irriga de gente o seu peito de concreto.
Ao acompanhar um festival de teatro somos tomados por diversas sensações. A possibilidade de vivenciar o mágico, o extraordinário, é algo tão raro nos dias atuais que quando acontece toma-nos de assalto uma vontade incontrolável de ir às lágrimas. De erguer no fundo do coração um monumento a esses pequenos momentos, tão rápidos quanto inesquecíveis. Uma vontade louca de tornar regra a convivência, de fazer do palco a única lei possível. De viver, mesmo sem consentimento ou possibilidade, a teimosia de existir por puro vício e de encontrar, onde quer que seja, aquilo que falta pra vida fazer ao menos um pouco de sentido.
Ao acompanhar um festival de teatro somos tomados por diversas sensações. A possibilidade de vivenciar o mágico, o extraordinário.
Nesse 13º Feverestival, Festival Internacional de Teatro de Campinas, não faltam assuntos para nos encantar, no entanto o maior encantamento fica mesmo por conta da convivência, e agora ao escrever vejo que talvez a grande questão em todos os festivais mundo a fora seja mesmo a possibilidade de vivência que se constrói através desses encontros. A cidade passa a ser cenário do acaso. Ao andar por praças, esbarramos com personagens. Caminhando por terminais de ônibus, somos devorados por línguas afiadas que cospem idiomas, dialetos. Saliva vinda de todos os cantos, prontas a inundar a língua daqueles que se permitirem lambuzar de todos os lados, por todos os tipos. Até mesmo dentro do ônibus encontramos teatro! A rua brilha quando a vida brota em toda esquina. Não é exagero, tão pouco é fantasia, afirmar que, meio sem querer, encontrei com o fantasma de Picasso, de cabelos aos ventos, andando em brasas pelo centro. Ele seguia firme, com o olhar pendurado no infinito, e a cada passo que dava a cidade que existia trás de seus passos se transformava no charmoso bairro de Montmartre, que encantou além do pintor espanhol nomes como Toulouse-Lautrec e Vincent van Gogh.
A rua, o encontro, a vida possível e não requentada. Fome de gente. Nada de carne de vaca! Parece besteira render homenagens a algo tão banal como o caminhar pelas ruas. Afinal, estamos acostumados a diariamente tomá-las para chegar onde quer que seja. A rua passa despercebida por nós, mas está sempre ali: pronta a se tornar história por algum motivo, já que revoluções, assassinatos, amores e terremotos também se dão em seus domínios.
Hoje no Brasil, a rua deixou de ser direito e passou a ser um privilégio. Vivemos tempos estranhos. No horizonte escuro de nossa nação a rua está ameaçada. O pânico se alastra pelo território nacional e o povo, feito histérico por uma imprensa conivente com os mais obscenos interesses, se entrega à rua em total desvairismo. Rouba, queima, mata! Um povo desesperado, que foi submetido a esse estado por um Estado podre, que comete assassinatos em troca de dólares. Em defesa da ordem, de uma ordem que respeita interesses que matam e que exploram, um gângster com ares de senhor de engenho decretou a tomada das ruas pelas forças armadas. A chegada da ordem pelas mãos violentas e sujas de sangue do exército brasileiro exige uma defesa através dos braços de Momo: a desordem.
Assistimos paralisados, entregues, o assalto à liberdade de um povo inteiro. Nesse momento de medo é preciso que todos saiam às ruas: saiam às ruas em busca de um entardecer digno de lágrimas. Saiam às ruas em busca de um céu estrelado que guarda os olhos daquela moça que deixamos esperando eternamente em uma estação de trem. Saiam às ruas para defender o direito de sair à rua e, principalmente, que saiam às ruas pelo simples motivo de que se não o fizermos agora, talvez precisemos passar muito tempo sem sujar a sola das botas por vontade própria.
É tempo de resistência e não aceitaremos que a rua seja o lugar das forças, estejam elas armadas ou não. A rua é morada do delírio e é através dele que venceremos o medo e tomaremos, na base da festa (Que venha o Carnaval!), o que é nosso direito. Brasileiros de todos os cantos e encantos, saí-vos e delirai-vos por aí. A rua será sempre sua, desde que dela não abras mão. Não é o medo da força bruta que nos fará abrir mão dos encantos da rua!