Semanas atrás, no dia 24 de julho, aconteceu a tão comentada posse do diretor e dramaturgo Roberto Alvim, fundador do extinto Club Noir e mais novo apadrinhado do presidente Jair Bolsonaro, no Centro de Artes Cênicas da Funarte. A nomeação foi umas espécie de agrado presidencial, anunciado tempos atrás, após chororô público de Roberto em suas redes sociais, denunciando uma suposta perseguição ao artista por conta de sua recente, e surpreendente, adesão ao governo de presidente e a defesa do pensamento abjeto do autoproclamado filósofo da extrema-direita tupiniquim, o ogro movido a ódio e nicotina Olavo de Carvalho.
Assim que foi anunciada pelo governo, a nomeação de Roberto Alvim causou polêmica e dividiu opiniões dentro e fora do tal círculo teatral. De um lado, comemoravam o que nomearam de “uma frente artística cristã”, outrora oprimida pelo “marxismo cultural”, que acabará com o “financiamento imoral e ideológico implantado pelos governos anteriores”; delírio pouco é bobagem, convenhamos. Em contraponto, pelas bandas de cá, apreensão total. O motivo é compreensível. Ao assumir a coordenadoria do Ceacen Roberto Alvim, usando da desonestidade e da mentira, fez um malabarismo ideológico fajuto, distorcendo dados e acontecimentos históricos no intuito de justificar a criação de sua perigosa e absurda “máquina de guerrilha cultural”.
Um fausto hi-tech parcela a sua alma no rossio digital
“Se estiver com lazer num leito de delícias
Não me importa morrer! Assim fico liberto!
Se podes me enganar com coisas deliciosas,
Doçuras a sentir, prazeres! Alegria!
Se podes me encantar com coisas saborosas,
Que seja para mim o meu último dia!
Quero firmar o acordo.”
Fausto de Goethe
Para compreender o peso da escolha de Alvim, e a tonelada dos dedos que o acusam de traição, é preciso antes de mais nada analisar, mesmo que rapidamente, a relação do governo de Jair Bolsonaro com as artes produzidas no Brasil. Desde sua ascensão, mesmo antes da campanha presidencial, Jair Messias Bolsonaro, do alto de sua ignorância e prepotência, só faz intimidar, ameaçar e oprimir os artistas da pátria que insiste em dizer que defende.
O atual presidente e sua horda de seguidores cegos atentam sistematicamente contra artistas e obras, ideologizando de maneira perigosa e rasteira todo e qualquer tipo de ação artística, acusando seus opositores dos mais graves e absurdos crimes e tendo apenas uma convicção manca e frágil como justificativa. O atual governo brasileiro é inimigo das artes, das ciências, dos estudantes, dos negros, dos indígenas, dos LGBTQs e de qualquer pessoa que não se deixe levar pela espumosa e raivosa boca de Jair. Não é o caso de Alvim.
Centrado no mais absurdo totalitarismo, Roberto Alvim almeja a reconstrução, ou a deformação, de uma instituição que sempre se pautou pela pluralidade estética, ideológica e artística.
Usando como desculpa seu recente cristianismo, como se o conservadorismo e a intolerância andassem de braços dados com Cristo, o dramaturgo tomou a defesa do governo atual e junta a ela a defesa do que há de pior na política brasileira. Alvim optou em lutar no front ao lado de grileiros, assassinos, milicianos, defensores de tortura e torturadores. Alvim escolheu o lodo. Escolheu defender essa gente que chega ao absurdo de usar leis de incentivo à cultura como mordaça e ameaça, e isso soa não apenas como afronta, mas como declaração de guerra.
Os artista que insistem em defender a liberdade de expressão e a livre manifestação artística, previstas em lei, desse governo com tons ditatoriais que, pouco a pouco, tenta esticar seus tentáculos sobre os nossos sonhos não podem se calar diante de sua nomeação. Roberto Alvim, ao pelejar ao lado dessa gente, tornou-se agente oficial da censura que busca se impor no horizonte artístico através do medo e da força. Por mais que o negue, e que tente manipular os fatos em defesa de uma isenção fictícia que o diretor garante preservar, Alvim tem o discurso e os gestos alinhados com a violência e a intolerância que usa como escudo para blindar essa mancha em sua história. O diabo, como descobriu Fausto tardiamente, além de boa memória possui também os dentes afiados, apesar destes estarem escondidos por trás de um sorriso amarelo e de uma fala falsamente mansa.
A coroação
“Pela preservação dos princípios, valores e conquistas da civilização judaico-cristã, contra o satânico progressismo cultural”.
Roberto Alvim
A frase acima parece tirada da mais alucinada obra de ficção. Fosse vista em preto e branco, com batuques e Villa-lobos ecoando ao fundo, a coisa pareceria saída de um desses filmes onde Glauber Rocha desvendava, feito um vidente, o futuro negro desse país, eterna Pindorama em chamas. No entanto, a oração em forma de delírio é absolutamente real e foi proferida por Roberto Alvim dias atrás, em entrevista ao O Globo. A mesma frase pode ser lida na internet em uma entrevista concedida dias antes, aliás quase idêntica, que o diretor deu ao site de direita MBC.
É evidente que, tratando-se dessa gente, a coisa não é mera coincidência. Aliás, em uma rápida busca na internet é possível verificar que Roberto Alvim anda com a agenda lotada e a cuca vazia, pipocando entre entrevistas e declarações polêmicas em espaços cibernéticos dedicados a análises distorcidas e acusações infundadas em nome de uma arte de direita tão estúpida quanto seus defensores. Pra se ter uma ideia, tão logo recebeu do “presida” a promessa de “um cargo importante na cultura”, o dramaturgo do Club Noir correu pra colocar as mangas e os caninos de fora. Numa releitura trágica do Macarthismo cinquentista norteamericano, anunciou a criação de uma lista de artistas engajados ao pensamento de direita, deixando claro que a outra lista, a negra, seria feita a partir daqueles que não atendessem o seu chamado desesperado e traiçoeiro. Lamentável? Não, desonesto mesmo.
Uma companhia estável de repertório clássico também foi anunciada por Roberto Alvim, e esse talvez seja o maior problema em relação a sua nomeação. Fica evidente ao ler as entrevistas do dramaturgo que tal iniciativa tem o intuito de impor ao público e à população brasileira a sua visão de mundo e a sua ideologia artística. Centrado no mais absurdo totalitarismo, Roberto Alvim almeja a reconstrução, ou a deformação, de uma instituição que sempre se pautou pela pluralidade estética, ideológica e artística. Alvim planeja uma ofensiva brutal contra a liberdade artística e a liberdade de expressão; afinal, centralizar e direcionar ideologicamente políticas públicas, combater o pensamento plural e aparelhar os mecanismos artísticos não são meios de governo simplesmente, mas meios de controle inconcebíveis em um país que, por mais que o cotidiano diga o contrário, ainda vive em um regime democrático. Combater esse sujeito, derramar água cristalina sobra a lama com a qual ele molda seu reinado de horror, não é apenas uma opção, mas sim um dever daqueles que acreditam que a arte é acima de tudo a morada perene da experimentação e da invenção.
A tragédia, sempre ela, não cansa de dar as caras e ditar as regras quando o assunto é teatro. Seja dentro ou fora do palco, sentindo-a na alma que gela ou na pele que arde, é sempre a tragédia que move as duras peças de aço e músculo que compõem o mecanismo cênico. Não tem jeito. Geralmente quando falamos de tragédia, ao menos à sombra do breu do tablado, logo lembramos dos gregos, e nos pipocam na cuca nomes de textos e autores: Ésquilo, Eurípedes, Sófocles; Édipo, Bacantes, Medéia. A tragédia cotidiana representada no palco está aí, desde empoeirados tempos, e persiste justamente porque a tragédia está mesmo aí: inundando as nossas vidas, dissolvendo o nosso sono madrugada adentro, roendo o pouco que resta do nosso sossego.
A nomeação e a posse de Roberto Alvim representam uma tragédia sem precedentes no teatro brasileiro, é inegável, no entanto é possível, e preciso, inflar o peito e dizer que não aceitaremos concessões ou negociações com essa gente. Por mais que eles nos condenem ao breu e à indiferença sabemos que o teatro é a morada do sonho e da possibilidade, e que apesar dos tempos sombrios em que vivemos é sempre tempo de pensar o amanhã, e o amanhã não admite velhos métodos obscuros ou ideias empoeiradas. Avante!