Nelson de Oliveira, em um texto intitulado Haverá Arte e Literatura numa Sociedade Respeitável? (na edição de agosto do jornal Rascunho), discorre brevemente sobre o caráter politicamente correto, o “bom-meninismo” e uma exacerbada moralidade que parece rondar a produção artística atual. São apresentados alguns casos recentes em que isso é visível: no teatro, os processos envolvendo o Teatro Oficina, Os Fofos Encenam e os Satyros e na literatura, as biografias não autorizadas e o caso de Pablo Katchadjan. Há outros, há muitos.
Para além dos casos em que o projeto ou o produto artístico tem problemas legais, institucionalizados, com efeitos, processos e consequências desse âmbito[1], Oliveira se refere ao quanto o trato com o material poético e com as temáticas não se torna também exercício da moralidade de um contexto em que o politicamente correto impera. É como se a polícia e as algemas adquirissem espaços outros a ponto de tornarem-se inexoráveis, inerentes. Apontar esse cenário não é, necessariamente, hierarquizar os efeitos artísticos de um trabalho frente a outro, tampouco é cobrar engajamento direto, mas é, antes de tudo, temer a estagnação – Nelson de Oliveira escreve sobre literatura, mas alcança a Arte, de maneira geral. Fala sobre como a transgressão, regra de outrora, foi progressivamente se tornando o que ele chama de “correção política-social-cultural”.
O autor afirma que “na sociedade da correção política-social-cultural”, “é preciso dar bom exemplo, cumprir a lei. Na vida – e por que não? – na representação estética da vida. Desenhos, pinturas, peças de teatro, balés e romances se parecerão cada vez mais com as novelas da tevê (formato do qual ele descreve uma cena em que um jovem triste sem embriaga de suco de laranja)”. E acrescenta: “Não estou falando apenas de transgressões de crenças e costumes, que atingem o comportamento social e contrariam a opinião pública. As muito bem-vindas transgressões formais – a maior conquista do modernismo do século 20 – também estão em perigo”.
É um recorte, dentro do qual o autor se sente livre para generalizar e, de certa forma, estereotipar. É insuficiente, porque não contempla a totalidade e a verticalidade que a Arte tem, mas não é mentiroso, pelo contrário, atesta e indica uma porção de coisas.

A peça Se Eu Morresse Amanhã, dirigida por Edson Bueno, que também está no elenco ao lado de Ricardo Westphalen, apresenta o encontro entre a Morte e um indivíduo: o motivo para um longo diálogo entre o “mortal” e o “fenômeno”.
O indivíduo em questão é um executivo, com todas as características que compõe o imaginário sobre esse “tipo”: um homem, heterossexual, branco, consumidor de vinhos, que se refere a “relatórios, reuniões e negócios”, que tem uma vida afetiva e familiar destroçada e apresenta-se ansioso, sem tempo livre e com sintomas de um “operário cosmopolita”. Um indivíduo sem nenhum nível de complexidade e com uma subjetividade absolutamente achatada, ainda que facilmente reconhecível, o que torna a identificação bastante restrita: além de não ser esse homem, você dificilmente gostaria de sê-lo.
“O teor do diálogo parece orbitar ao redor dos “erros” cometidos por esse indivíduo que se encontra frente a morte, ‘sem saída’.”
A Morte, por sua vez, tem a elegância irônica e um certo sadismo que se completa com frases feitas e pequenos plágios disfarçados de frases encorajadoras. A Morte, além de arrogante é moralista (ainda que jogue, às vezes, com essa moralidade).
O teor do diálogo parece orbitar ao redor dos “erros” cometidos por esse indivíduo que se encontra frente a morte, “sem saída”. Não ter dito que amava os filhos, ter se divorciado, não ter tido tempo para fazer as coisas que queria, não ter “aproveitado a vida” são todas sensações que surgem e são repreendidas. A Morte parece sugerir que os excessos não poderiam ter sido feitos, tampouco as omissões, tampouco os “erros” (que soam como “pecados”). Um discurso de “aproveite a vida” que facilmente se torna “tenha uma vida exemplar”.
Nesse sentido, não há espaço para a pluralidade, contida no que quer que seja. A moralidade, entendida enquanto cartilha, enquanto plano, enquanto modelo se faz real em todos os níveis do que é apresentado. A morte, que evoca uma suposta igualdade entre os seres humanos, aqui, se apresenta como a Morte, personificada em uma figura soberana apta a tecer julgamentos sobre a vida que finda. A Morte: uma entidade “respeitável” tão reguladora quanto várias outras – tão potencialmente danosas, como sabemos.
[1] Esse espaço pode ser longamente discutido em vários termos. Como apresenta Nelson Oliveira, por exemplo, o “plágio”, ainda que o “plágio criativo”, como fez Kabe Wilson e Pablo Katchadjan, é considerado “roubo”. Direitos autorais, propriedade intelectual e essas questões são bastante polêmicas e precisam, cada vez mais, serem discutidas entre os artistas e os responsáveis pela lei – em todas as suas fases de execução.
SERVIÇO
Se Eu Morresse Amanhã
Quando: 23/07 a 09/08, de Quinta-feira a Domingo, às 20 horas;
Onde: Glauco Flores de Sá Brito (Mini Auditório), no Teatro Guaíra (entrada pela Rua Amintas de Barros).
Quanto: R$ 43 e R$21,50 (meia-entrada).