A série “Teatro em Aberto” é algo absolutamente novo por aqui, inclusive para este que vos escreve. Este espaço glorioso é imprescindível a esses grupos que, apesar de manterem um trabalho contínuo e de qualidade, encontram dificuldades para, mais que divulgar, pensar e debater sobre o trabalho que desenvolvem e outras questões ligadas ao exercício do teatro. Que as pequenas companhias enfrentam dificuldades tremendas para conseguir espaço na mídia convencional, cada vez mais desinteressada e preguiçosa em relação às artes, não é nenhuma novidade. No entanto, acredito que é preciso lutar pela conquista de espaços cada vez mais amplos, onde possamos nos aprofundar nas questões que nos atormentam enquanto criadores.
É preciso, antes de tudo, tirar o teatro do próprio umbigo e despir a máscara do gênio incompreendido para se posicionar diante do mundo. Por isso, essa série vem se apresentando enquanto um ponto de convergência de desejos, na busca por em espaço onde o encontro e o delírio ditam as regras. Foi com esse espírito, carregando um gravador em uma das mãos e a ansiedade no fundo do peito, que encontrei a Cia Corpo Santo para conversar sobre teatro.
Em primeiro lugar, é preciso fazer um esclarecimento logo de cara: o nome da companhia nada tem a ver com dramaturgo Qorpo Santo, apesar de sempre haver confusão a respeito. Douglas Chaves, fundador e dramaturgo da companhia, conta que “Corpo Santo surgiu da ideia de que o ator é sagrado, uma espécie de santo mesmo. Além disso, sempre trabalhamos muito as questões corporais e compreendemos o corpo como um instrumento para o teatro, sempre reconhecido através da liberdade: eu faço com esse corpo, atuante, aquilo que eu bem entender”.
Corpo Santo surgiu da ideia de que o ator é sagrado, uma espécie de santo mesmo.
O grupo, resultado encontro de alunos do Conservatório Carlos Gomes há dez anos atrás, nasce, sem grande pretensões, da vontade de vivenciar e experimentar o teatro em toda a sua grandiosidade. Dos exercícios teatrais propostos em sala, surgiram pequenas pedras preciosas das quais era impossível abrir mão. Diante disso, os atores passaram a procurar possibilidades para apresentar, fora da escola, os trabalhos que consideravam acima da média.
Eis aí a primeira grande dificuldade da Corpo Santo: a carência de espaço que assola a cidade de Campinas. Luis Binotti, ator da companhia, lembra que “A questão do espaço, de início, foi a mais complicada. Primeiro pela dificuldade de encontrar um espaço para ensaio, para começar um projeto e se dedicar diariamente. Nesses dez anos de companhia, fizemos espetáculos em diferentes lugares, inclusive na sala de casa. Campinas é uma cidade que nega espaço aos seus artistas, infelizmente. Sem contar que os espaços existentes sofrem com carência de coisas básicas como iluminação, por exemplo”.
Alguns grupos se acovardam diante da negligência com a qual o mundo vigente nos esfola diariamente a fuça. Esse, felizmente, não é o caso da Cia Corpo Santo. Ao ficarem face a face com o fantasma da negação, os atores decidiram devorar os espaços que estavam disponíveis e não adaptar, mas sim buscar alternativas para continuar em cena, como explica Douglas. “Isso acabou influenciando na estética do grupo. Passamos a compreender que era preciso partir do espaço para encontrar as possibilidades de encenação. O que antes era apenas uma adequação passa a ser uma opção estética. É preciso ser malicioso com o espaço para entender que, às vezes, um espaço cru é mais interessante que uma caixa de teatro”.
O trabalho da companhia é contínuo e incessante. Ao longo de dez anos foram produzidos e encenados nove espetáculos, três deles inspirados em grandes dramaturgos – Nelson Rodrigues, Jean Genet e Frank Wedekind – e seis espetáculos autorias, contando inclusive com dramaturgia própria, coisa rara nos dias atuais. Dentre os espetáculos autorais é preciso destacar a peça Lugar Incomum, um divisor de águas na concepção teatral do grupo, como explica o ator Jefferson Leardini. “A peça surge como um marco na nossa companhia, pois foi através dela que conseguimos realmente enxergar que existia em nós algo diferente e, a partir daí, tivemos a vontade de explorar essas diferenças. A gente não faz isso de maneira proposital, fazemos isso na busca de um trabalho honesto e sincero mas que se mantenha incômodo”. Wal Buarque, atriz, complementa: “é preciso gerar uma reflexão que vá além do espaço do teatro. O público precisa sair do espaço pensando no que assistiu, sempre”.
Entre novos projetos e antigas paixões, não resta dúvida de que a Cia Corpo Santo é uma das companhias mais intensas e interessantes da cena teatral atual. Buscam, sem medo, se reinventar a todo momento e encontram no seu próprio descaminho a saída para um teatro que prescinde de gente como eles. Em 2015, a companhia completa seus dez anos de existência, que será comemorado com um novo espetáculo. Acompanhando a carreira deles, me sinto a vontade para responder umas das indagações desse novo processo ao qual os atores estão se submetendo: onde estará você daqui dez anos?
Confesso que sou um homem pessimista, movido pela inconstâcia e refém de uma ansiedade que me corrói o peito. Não posso, e nem pretendo, imaginar a minha vida daqui dez anos. No entanto, posso afirmar sem titubear que daqui uma década a Cia Corpo Santo estará, merecidamente, na história do teatro brasileiro e, consequentemente, no inconsciente de todos aqueles que, assim como eles, acreditam que o teatro pode vencer todas as dificuldades e reinar absoluto em um mundo que nos dê o direito de sonhar.