28 de outubro é dia de festa. Lá fora, a noite de hoje se agita. O céu se cobre de estrelas, mesmo diante da tempestade que a metrópole anuncia, e a lua prateada alumeia e enfeita as saracuras que insistem em alçar voo longe do bairro do Bixiga, centro de São Paulo.
Na Rua Jaceguai há uma expectativa travestida de êxtase. Diante do elevado de concreto por onde os carros rasgam o coração da Paulicéia, mais precisamente na altura do número 520, é possível ouvir um burburinho de festa, um silêncio de regresso, uma prece acompanhada de uma gargalhada saída do ventre do asfalto. Ali, disfarçado de paisagem e protegido por uma porta metálica, o teatro brasileiro começa a despertar depois de quase dois anos de espera.
As senhoras católicas e piedosas não habitam as calçadas do Bela Vista nessa noite. Olhos tingidos de verde atravessam a rua em busca de uma dose violenta de qualquer coisa e é possível bombardear o horizonte através de nossos sonhos. 28 de Outubro de 2021 é dia de festa.
O Teatro Oficina, a experiência mais duradoura e resistente do teatro brasileiro, comemora os seus sessenta e três anos de vida e de luta como o bom sertanejo que é: de punhos cerrados, ao lado do povo e com a certeza de que a peleja é um exercício contínuo que deságua num rio imenso feito de esperança e poesia.
Eleito pelo The Guardian como melhor e mais bonito teatro do mundo, o projeto da fantástica Lina Bo Bardi encontrou na insistência messiânica de José Celso Martinez Corrêa a medida ideal onde revolução e genialidade transformam-se em eternidade. É impossível pensar o Bixiga, ou até mesmo a cidade de São Paulo, sem o Oficina cravado em seu asfalto. O mais paulistano dos teatros é, sem sombra de dúvidas, uma obra que torna concreta não apenas a liberdade, mas a sua pulsão e os motivos que nos fazem compreendê-la como a musa máxima das artes e da existência.
O mais paulistano dos teatros é, sem sombra de dúvidas, uma obra que torna concreta não apenas a liberdade, mas a sua pulsão e os motivos que nos fazem compreendê-la como a musa máxima das artes e da existência.
Fundado em 1958, o Oficina é exemplo de luta quase ininterrupta na cultura brasileira. Liderada desde sempre pelo incansável Zé Celso, a companhia atravessou e ajudou a escrever a história das artes cênicas brasileira se reinventando e rebolando para reexistir em um país que, também desde sempre, se acostumou a ignorar e escarrar a face de seus filhos mais notáveis.
Com o perdão do exagero, afinal ao falar ou escrever sobre o Oficina é preciso guiar-se pela grandeza, não há no mundo trajetória mais impressionante e coerente. Prova disso é a escolha de repertório para a reabertura: Paranóia, baseada no poemão alucinado e alucinante de Roberto Piva, e Esperando Godot, obra máxima do monstruoso Samuel Beckett, apresentada como um filme de José Celso Martinez Corrêa e Monique Gardenberg com a parceria de Itaú Cultural e SPCine.
Para muitos paulistanos, trabalhadores do teatro ou não, o retorno às atividades culturais foi marcado pela entrega do oitavo prêmio Bibi Ferreira, acontecida no último dia 20. Para outros tantos, e este que vos escreve figura nesse grupo, essa retomada tem o cheiro e o jeito dessa noite proporcionada por Zé Celso e sua trupe. Afinal, e é preciso deixar isso claro como o amanhecer que nos estraçalha os olhos cansados da madrugada, o bardo de Araraquara e todos aqueles que fazem do Teatro Oficina essa alucinação tão necessária quanto divina transformam não apenas a água em vinho – Evoé Dioniso – mas também o cotidiano em beleza.
Era dia de festa. Era dia 28 de Outubro. Era uma noite daquelas que a gente nunca esquece… foi numa quinta-feira. Voltamos!
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