De todas as características humanas, talvez a mais marcante seja aquela que é incontestavelmente a nossa característica universal: a estupidez. Somos estúpidos por natureza! Somos estúpidos e isso basta! Navegamos pelo mapa mundi de nossos destroços crentes de que alcançamos uma era de glória e prestígio, mas no fundo sabemos que nossas conquistas se deram, sempre, pela força da brutalidade e do desespero de uma espécie fadada à sua estupidez crônica e ruidosa. Se só a antropofagia nos une, como profetizou Oswald de Andrade, a estupidez talvez seja hoje a única forma de nos reconhecermos humanos, estupidamente humanos. Provas dessa nossa pecha não nos faltam. Sobram obras, em todas as frentes, que nos colocam cara a cara com nossa própria miséria e seria impossível, além de doloroso, enumerá-las nesse modesto espaço. Uma dessas obras, porém, é de extrema urgência no atual cenário político nacional: Ubu Rei, peça teatral do poeta e dramaturgo francês Alfred Jarry.
Pai Ubu, segundo Jarry em seu discurso pronunciado na estreia do espetáculo no Théâtre de l’Oeuvre em 1896, representa todo o grotesco existente no mundo. Esse ignóbil senhor, que por sua frágil humanidade lembra a todos nós, assassina o rei da Polônia (lugar nenhum) e justifica o crime cometido através de uma luta contra a tirania, o que logo o torna um mártir para aquele povo carente de heróis. No entanto, tão logo chega ao trono, Pai Ubu se torna também um tirano, como seus inimigos, e inicia uma série de assassinatos em nome de uma ordem que nunca existiu. O recente rei assassina sistematicamente todos que se opõe contra seu reinado de caprichos. Ubu massacra primeiramente os nobres, em seguida os funcionários e, por fim, os camponeses. Após matar a todos, o personagem principal tem a certeza de que aniquilou também alguns culpados, e isso, a seus olhos, o torna um homem moral e, consequentemente, normal. Através de um espírito anarquista, Pai Ubu passa a executar seus próprios decretos, executa pessoas por prazer e rouba em nome das finanças, as suas evidentemente. É, pois, o menino mimado, como descreve Jarry, que tem o poder em mãos e o povo na goela.

Lugar nenhum é o reino de Ubu e, portanto, pode ser qualquer lugar do mundo em qualquer época, o que torna esse pai, e a questão paternalista não é um mero acaso, um tirano como outro qualquer que habita o mundo onde nos rastejamos para viver em paz. Como todo tirano que se preza, Ubu não passa de um covarde, por isso, apesar de ser detentor de toda barbárie, o personagem não volta sua ira contra o Czar, tornando-se um capacho aos olhos de todos e perdendo aos poucos a autoridade da qual gozava. Ubu não passa de uma piada, porém uma piada de péssimo gosto que nos asfixia através de um riso que nunca escapa dos lábios.
Ubu não passa de uma piada, porém uma piada de péssimo gosto que nos asfixia através de um riso que nunca escapa dos lábios.
Um golpe de estado injustificável é o início da saga de Ubu. Não é preciso ser um gênio para traçar um paralelo da peça de Alfred Jarry com a atual situação política brasileira. Nós, como seus súditos, também nos encontramos à deriva nesse mar de merdre onde velejam os poderosos com suas obscenas embarcações feitas de uma moralidade completamente imoral. Tal qual Ubu, nossos atuais governantes são a personificação dos mais baixos instintos humanos e, da mesma maneira, tramam assassinatos às escuras. É certo que o rei de Lugar Nenhum ao menos tinha a decência de se proclamar um assassino; já por aqui, os indecentes governantes invocam os bons costumes para praticar seus crimes em nome de um Deus putrefato que, ao invés de templos, habita paraísos fiscais.
Bastaria essa semelhança de um estático estado impassível para justificar uma nova montagem de Ubu Rei em nossa pátria nos dias atuais. Apesar de termos por aqui encenações históricas do texto, como a apresentada pelo grupo Ornitorrinco, a atemporalidade da obra de Alfred Jarry permite um mergulho em nosso próprio ventre para compreender, e dominar, os meios aos quais estamos submetidos. A versão de Sebastian Marques para a peça do poeta francês, que estreia no Sesc Campinas no próximo dia 03 de junho, já se torna imprescindível aos olhos deste que vos escreve por conta dessa urgência de obras que se posicionem diante de nosso tempo; no entanto, o ator e diretor guarda ainda uma particularidade: é, até que se prove o contrário, a primeira adaptação do espetáculo feita exclusivamente para o teatro de bonecos.

O espetáculo
A ousada adaptação de Sebastian é fruto de um desejo antigo do artista: a montagem de um clássico teatral transportada para a realidade brasileira. Currículo para isso não falta. Sebastian Marques é um artista de olhos universais que tem na defesa das tradições regionais do Brasil a sua bandeira. Como todo brasileiro moderno, o antropófago diretor faz questão de devorar a obra “forasteira” e nos entrega um espetáculo abrasileirado que tem muito a dizer ao nosso povo. A expressão facial de Ubu, por exemplo, foi inspirada nas carrancas do rio São Francisco. Além disso, todos os bonecos, criados pelo artista Celso Ohi, foram confeccionados em mulungu que, ao lado da umburana, é utilizada para a feitura de mamulengos.
Àqueles que desconhecem, o mamulengo é o nome que recebe o teatro de bonecos em Pernambuco. Arte praticada pelos chamados artistas do povo, os espetáculos dessa natureza buscam representar os anseios do homem. O boneco é um modelo do homem em movimento, buscando-se através dele a simulação que reinventa a vida através dos fantoches em cena, como o faz o Bunraku no Japão.

O cenário da espetáculo criado por Sebastian também foge do convencional. Assinado pela artista plástica Cássia Lírio, ele emoldura um palco de 3 metros de altura por 2,6 metros de comprimento, ampliando o raio de ação dos personagens tornando-os mais representativos diante do público. O espetáculo conta ainda com figurinos de Tana Jacome e trilha sonora original de Carla Vizeu.
Em épocas guiadas pelo desespero, é preciso encontrar um norte de esperança para seguir em frente. Quando temos os pulmões cansados de tanto soluçar e as lágrimas custam a nos encharcar o rosto, a única saída possível é o riso. Um riso seco, anárquico, que faz tremer o carrasco e nos devolve, mesmo que momentaneamente, a possibilidade de um sorriso, mesmo que esse sorriso seja fruto de uma raiva que nos consome diariamente. Esse é o riso que Alfred Jarry nos legou em Ubu Rei, e é com esse mesmo riso que Sebastian nos confronta anos depois.
Quando o viver se torna uma piada, é dever do homem moderno gargalhar de sua própria estupidez. Só assim, quem sabe, poderemos enfim viver em paz com nossas desgraças.