Em 1983, surgia uma emissora de TV aberta diferente das outras. Fundada pelo empresário ucraniano Adolpho Bloch, a Rede Manchete se destacou, nos curtos dezesseis anos em que existiu, pela programação arrojada e vanguardista. Sua marca se deu na cobertura jornalística, nos programas de entretenimento e nas novelas ousadas, que geravam muita polêmica e que, eventualmente, conseguiam o que parecia impossível: vencer em audiência a Globo.
Uma dessas novelas estreava há 25 anos, em 17 de setembro de 1996 – e, olhando em retrospecto, até hoje é difícil acreditar que ela tenha existido e sido veiculada na TV aberta. Falo de Xica da Silva, o polêmico folhetim estrelado pela iniciante atriz Taís Araújo, então com 17 anos. Xica da Silva era, na verdade, inspirada em um episódio real da história do Brasil: ela conta a vida de uma mulher negra escravizada que foi liberta e se casou com um homem branco, o comerciante de diamantes João Fernandes de Oliveira, na cidade de Diamantina, em Minas Gerais. Xica, dessa forma, tornou-se uma mulher poderosa, sendo ela mesma dona de escravos.
Claramente, trata-se de uma história fascinante, cercada de mitos – e que a novela da Manchete ajudou a consolidar e propagar. Xica da Silva foi escrita por Walcyr Carrasco (que assinou o roteiro sob um pseudônimo, Adamo Angel) e dirigida por Walter Avancini, cujo trabalho, até hoje, é cercado de controvérsias, especialmente no que diz respeito às escolhas da trama e aos métodos que usava com os atores. Apenas para se ter uma ideia, uma das cenas mais fortes da novela envolve o estupro da personagem de Adriane Galisteu, experiência que a então atriz descreveu como traumática. A própria Xica da Silva teve uma cena de estupro na novela.
A verdade é que Xica da Silva, observada sob o ponto de vista atual, é uma novela capaz de gerar muita reflexão. Para começar, por sua estética “suja”, bastante típica das novelas da Manchete, e que parece hoje inimaginável na TV. A ambientação parecia comprometida em reproduzir o que seria a vida no Brasil no século XVIII, sem saneamento algum ou qualquer preocupação moderna com higiene.
Além disso, em nome deste realismo a toda prova, Xica da Silva investia pesado em cenas de violência e de erotismo. Pouca coisa ficava no plano da metáfora. O sofrimento dos negros escravizados precisava vir à tona pelo corpo, em cenas com muita tortura, sangue e sofrimento. O primeiro episódio, com participação especial dos atores Marcos Breda e Silvia Buarque, já dá a tônica do que se veria nos mais de duzentos capítulos. Já há uma tentativa de violência sexual contra Xica, que aparece, pela primeira vez, banhando-se sensualmente num rio, e que engana os estupradores. Além disso, já nesta abertura da novela, há uma fortíssima cena de tortura contra o pai de Xica.
Contagem regressiva da nudez
O mais interessante em Xica da Silva, penso, é notar que parece inimaginável visualizá-la na TV aberta hoje, mesmo no horário em que foi veiculada na Manchete, na faixa das 22 horas.
Outra questão até hoje discutida foi a aposta feita na iniciante Taís Araújo, hoje uma estrela da Globo. À época, Taís tinha 17 anos – completaria 18 em 25 de novembro, ou seja, dois meses após a estreia da novela. Este fato gerou uma espécie de comoção nacional em torno do seu aniversário. Com a maioridade, Taís poderia aparecer nua na trama, o que de fato aconteceu, em um banho de cachoeira. Inacreditavelmente (ao menos pelos padrões atuais), a Manchete levou ao ar propagandas que faziam uma contagem regressiva para o aniversário da Taís, de forma a gerar em expectativa em torno da cena de nudez. O esforço acabou gerando bons índices de audiência para o episódio em questão.
Uma das qualidades de Xica da Silva, no entanto, reside no fato de que a sua trama não se centra apenas na força da personagem principal. Na verdade, o elenco foi formado por estrelas que encarnavam personagens fortes. Muitos destes atores estavam ainda em início de carreira, e seriam consagrados nos anos seguintes. Há muitos que podem ser destacados aqui, como a atormentada e diabólica Violante, interpretada por Drica Moraes, que venceu o prêmio APCA de Melhor Atriz pelo papel; a mãe de Xica, vivida por Zezé Motta, que interpretou a própria Xica no filme homônimo, de 1976; e uma dupla que teve forte participação na história, Elvira, prostituta vivida por Giovanna Antonelli, e seu amigo gay Zé Mulher, papel de Guilherme Piva. Também não é possível esquecer dos atores veteranos presentes na trama, como Miriam Pires, Sérgio Britto, Mauricio Gonçalves, Jayme Periard, Lecy Brandão, Paulo César Grande e até o cantor Eduardo Dusek.
O fetiche da violência
O mais interessante em Xica da Silva, penso, é notar que parece inimaginável visualizá-la na TV aberta hoje, mesmo no horário em que foi veiculada na Manchete, na faixa das 22 horas. O que nos leva a refletir: será que “encaretamos”, desde 1996? Creio que a questão é mais complexa. A evolução da discussão em torno da dramaturgia faz questionar certas escolhas feitas em Xica, especialmente no que diz respeito a uma certa fetichização da violência. Em outras palavras, há hoje uma maior ponderação em torno dos efeitos da imagem da violência, fazendo-nos pensar se, realmente, a única forma de entender o sofrimento da escravidão é por meio da visualização explícita das torturas aos corpos negros. É uma discussão semelhante à ocorrida, por exemplo, em torno de 12 anos de escravidão (2014), filme de Steve McQueen, ou mesmo sobre o sofrimento de Jesus em A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson.
Coisa semelhante pode ser dita em torno da sexualidade de Xica e de outros personagens da trama. Mesmo Taís Araújo – embora explicite sua gratidão pelo trabalho, que ajudou a impulsionar sua carreira – já se manifestou acerca das escolhas feitas pelo diretor e roteirista em torno da nudez e da sensualidade de Xica, que ajudam a fortalecer a ideia de que a ex-escrava tinha como única força o seu corpo, além de reforçar o estereótipo nocivo às mulheres negras.
Creio que todas as essas discussões são importantes e precisam hoje serem vistas como oportunidade de debate sobre estes temas. Não obstante, recomenda-se jamais esquecer: a novela Xica da Silva é um marco da dramaturgia brasileira e precisa ser celebrada como tal.